Interiorização é esperança para mais de 50 mil venezuelanos no Brasil
Vender todas as suas coisas e deixar o país foi a reação da venezuelana Keila…
Vender todas as suas coisas e deixar o país foi a reação da venezuelana Keila Ruiz Yepez ao se ver em meio a uma crise social e humanitária. Ela cruzou a fronteira com o Brasil, alcançando o estado de Roraima em agosto de 2018. Saiu de um extremo do país para outro e atualmente, aos 45 anos, vive com o marido e dois filhos em Esteio, no interior do Rio Grande do Sul (RS).
“Somos da capital Caracas, mas vivíamos na Ilha de Margarita. E não tinha comida. O abastecimento dependia de navios e também havia falta de gasolina. Tínhamos dificuldades de acesso ao trabalho e à escola. Quando chegamos em Esteio foi muito emocionante. As pessoas nos receberam com um carinho que não consigo explicar. Meus filhos começaram a estudar, conseguimos trabalho. Iniciamos uma nova vida”, lembra. A cidade também se preparou para receber um contingente de venezuelanos e integrá-los: a prefeitura de Esteio determinou o ensino obrigatório da língua espanhola nas escolas municipais.
Hoje, o município que tem cerca de 90 mil habitantes abriga 416 venezuelanos. A trajetória de cada um deles guarda semelhanças, como muitas outras envolvendo o recomeço em solo brasileiro.
Na semana passada, o Ministério da Cidadania realizou uma cerimônia para celebrar a marca de 50 mil venezuelanos interiorizados por meio da Operação Acolhida, iniciativa que envolve uma rede de organizações sob a liderança da pasta. Um estudo lançado pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) nesta quinta-feira (29) traduz em números histórias de esperança que vêm sendo construídas por essa população.
Realizado em parceria com a organização humanitária Aldeias Infantil SOS Brasil, o levantamento feito com 198 entrevistados em nove municípios do Sul, Sudeste e Nordeste revelou que 51% deles têm acesso a curso de treinamento e qualificação profissional, 95% usaram o serviço de saúde do país e 93% afirmaram ser boa ou muito boa a relação com os brasileiros. Em 63% das famílias, os filhos estão matriculados na escola. Além disso, 98% têm acesso à energia elétrica, 99% acesso à água potável e 97% ao saneamento básico. A renda média familiar mensal declarada foi de R$ 1.338,20.
O levantamento revela, segundo o Acnur, a capacidade de boa parte dos venezuelanos de superar as dificuldades que se somam ao deslocamento involuntário. “Ainda que a renda familiar tenha apresentado perdas devido à pandemia de covid-19, foi possível constatar a efetividade e sustentabilidade das ações que visam ao acesso à educação, saúde, infraestrutura do lar e geração de renda na modalidade institucional da interiorização”, registra o estudo.
Diante do acolhimento encontrado no Brasil, apenas 22% do entrevistados disseram que gostariam de voltar à Venezuela. Keila não está nesse grupo. “Quero ficar aqui. Me sinto em casa. Tenho acesso aos serviços básicos. Mas claro que eu sinto saudade. Quando escuto uma música, vejo uma notícia de lá, me parte o coração”, diz.
O movimento atípico na fronteira começou a chamar a atenção em 2017, culminando com uma série de problemas sociais no município de Pacaraima (RO), a 215 quilômetros da capital Boa Vista. No ano seguinte, o quadro se intensificou e, em 2019, o fluxo se manteve em patamar alto. Diante do cenário, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, reconheceu em 2019 a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela. A decisão influencia a análise dos pedidos de reconhecimento da condição de refugiado apresentados pelos venezuelanos.
De acordo com Paulo Sérgio de Almeida, oficial de meios de vida do Acnur, cerca de 500 pessoas ingressavam diariamente no país. “Nem todas ficavam no Brasil, há um fluxo de entrada e saída. Mas uma parte dessas pessoas acabava ficando”, afirma.
A Operação Acolhida surge em abril de 2018 como uma resposta emergencial humanitária do Estado brasileiro ao fluxo migratório decorrente da crise no país vizinho. A iniciativa, liderada pelo Ministério da Cidadania, conta com o suporte de uma rede de organizações da sociedade civil articuladas com o apoio do Acnur. Também busca envolver estados e municípios nesse acolhimento aos venezuelanos. O Exército brasileiro coordena a logística de deslocamento dos migrantes.
“Estimamos que cerca de 260 mil refugiados e migrantes venezuelanos vivem atualmente no Brasil. Isso equivale a dizer que um em cada cinco recebeu apoio da Operação Acolhida. A parceria assegura que os refugiados e migrantes venezuelanos encontrem no Brasil um horizonte de esperança”, disse o ministro da Cidadania, João Roma, durante o evento que celebrou a marca dos 50 mil interiorizados.
Vocação brasileira
Três pilares constituem a Operação Acolhida: o primeiro é o ordenamento de fronteira e documentação e o segundo envolve a garantia do acesso às necessidades básicas da população que está chegando, incluindo a oferta de acolhimento nos abrigos estabelecidos em Roraima. O terceiro pilar é a integração socioeconômica por meio da estratégia de interiorização.
A iniciativa reitera uma vocação do país, consolidada historicamente, para lidar de maneira positiva com migrantes e refugiados. O Brasil é, por exemplo, considerado pelo Acnur uma referência internacional no tratamento dado aos sírios que fugiram do conflito armado que assola o país do Oriente Médio há dez anos. A legislação garante aos refugiados os mesmos direitos que qualquer cidadão brasileiro, como acesso a serviços de saúde e de educação.
O caso dos venezuelanos é mais desafiador devido ao volume que entra no país. Desde o início da crise humanitária em 2017, o Conare já concedeu refúgio a 46 mil venezuelanos. De todos os refugiados em solo brasileiro, cerca de 80% vieram da Venezuela. Na América Latina, o Brasil é a nação que reconheceu o maior número de refugiados provenientes do país vizinho.
Brasileiros e venezuelanos não têm muita dificuldade para atravessar a fronteira que os separa. Em decorrência de um acordo bilateral, turistas não precisam de vistos e podem visitar o país vizinho por 90 dias. Para lidar com o fluxo intenso a partir de 2017, um posto da Operação Acolhida foi instalado em Pacaraima, próximo à fronteira. No local, é feito um primeiro processo de identificação, triagem e orientação sobre documentação para ter acesso à estratégia de interiorização.
Duas possibilidades são indicadas aos venezuelanos para regularizar a situação de permanência. A primeira é solicitar o reconhecimento da condição de refugiado. A outra é pedir um visto de residente temporário, alternativa oferecida pelo governo brasileiro que permite ficar no país inicialmente por dois anos. Posteriormente, é possível requerer uma conversão para um visto de longa duração. Tanto os solicitantes de refúgio e refugiados já reconhecidos, quanto os residentes temporários têm acesso pleno a serviços públicos. Estão liberados para buscar vagas no mercado de trabalho e podem obter seu Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho.
“Na região da fronteira, não há possibilidades de inserção socioeconômica de toda a população que chega. Então, uma parte busca outras regiões do Brasil. A estratégia de interiorização apoia as pessoas que queiram se deslocar para outras cidades brasileiras, onde há melhores perspectivas de inserção socioeconômica”, explica Paulo Sérgio de Almeida, oficial do Acnur.
Criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para assegurar e proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo, o Acnur se mantém exclusivamente com doações que podem ser feitas, por meio de seu site. No Brasil, ele tem atuação direta em Roraima, justamente devido às preocupações com a situação na fronteira com a Venezuela. No resto do país, a atuação é indireta, financiando organizações sociais e entidades do terceiro setor. Elas desenvolvem ações em frentes variadas, que incluem cursos de português, capacitação profissional, encaminhamento de crianças para a escola, concessão de auxílios sociais e financeiros, atendimento psicossocial, entre outras.
Um depoimento gravado pelo venezuelano Alberto José Figueredo Lugo, exibido na cerimônia organizada para celebrar os 50 mil interiorizados, revela a importância dessa rede de organizações sociais articuladas no Brasil. Ele destaca o acolhimento obtido em Boa Vista por meio da Cáritas Brasileira, entidade vinculada à Igreja Católica. Há três anos no país, Lugo se sente realizado. “Representou muito para mim. Mudança de vida, sonhos, metas. Consegui entrar no mercado de trabalho. Meu sonho sempre foi ser empreendedor e ter meu próprio negócio. Hoje tenho uma hamburgueria na cidade de São Sebastião. E quero dar minha contribuição a esse país que me acolheu”, disse.
Modalidades
A interiorização pode se dar em várias modalidades. Na mais comum, denominada institucional, pessoas sozinhas ou junto com a família vão para um dos centros de acolhida e de integração apoiados pelo Acnur, que existem em diferentes cidades de 13 estados. Lá eles são abrigados geralmente por três meses e recebem apoio para se inserir na nova sociedade. Outra modalidade é voltada à reunificação familiar, quando já existem parentes morando em outros estados. Nesse caso, o governo assegura a logística para o reencontro. A terceira modalidade, de reunião social, é similar e ocorre quando o migrante já tem amigos ou conhecidos vivendo no Brasil e dispostos a acolhê-lo em sua residência.
Por fim, existe uma última possibilidade, quando alguma empresa se interessa em contratar venezuelanos que estão em Roraima. Nesse caso, há um procedimento rigoroso adotado pela Operação Acolhida, que começa com o levantamento de perfis e com o recrutamento e envolve ainda a avaliação das possibilidades de moradia no local de destino.
O Iguatemi Empresa de Shopping Centers, em São Paulo, recorreu à Operação Acolhida. “Atualmente temos 26 migrantes e refugiados no nosso quadro de trabalho em diferentes shoppings, a maioria da Venezuela. Estamos muito comprometidos com a equidade de gênero e por isso procuramos trazer mais mulheres para compor a nossa diversidade. Consideramos importante, neste momento de pandemia, contribuir para ressignificar a vida e o trabalho de algumas mulheres venezuelanas”, avalia Vivian Broge, diretora de Recursos Humanos da empresa.
Manaus é líder em número de venezuelanos acolhidos pela estratégia de interiorização. Foram 4.893. Na lista das dez cidades que mais receberam os vizinhos, oito são capitais. As outras duas são Dourados (MS), para onde foram 2.517, e Chapecó (PR), que já recebeu 1.056. Segundo Paulo Sérgio, é justamente a mobilização de empresas que tem colocado algumas cidades médias em destaque.
“Nessas duas cidades, o setor de processamento de alimentos, sobretudo frigoríficos, tem participação. São empresas que vêm expandindo sua capacidade de produção, seja para exportação, seja para atender algum tipo de demanda adicional e, muitas vezes, não acham trabalhadores na região em número suficiente para preencher todas as vagas abertas. E as pessoas contratadas vão com suas famílias ou trazem suas famílias depois”, afirma.
O acesso a emprego formal é considerado um dos principais indicadores do sucesso da interiorização. Ele foi medido em um levantamento em 2019, realizado pelo Acnur em parceria com a organização internacional Reach, que comparou a situação das pessoas interiorizadas em dois momentos: quando elas ainda estavam em Roraima e cerca de quatro meses depois de chegarem aos novos destinos. Foram estudados núcleos familiares que somam 314 indivíduos. Os resultados mostraram que houve aumento médio de 230% na renda familiar mensal, saltando de R$ 532 para R$ 1.758. O acesso a emprego formal aumentou de 7% para 77%.
Além disso, muitas famílias passaram a ter condições de deixar os abrigos e alugar casas. Antes da interiorização, apenas 22% delas tinham essa capacidade. Quatro meses após a chegada aos novos destinos, 74% já estavam em imóveis alugados. “Muitos dos venezuelanos tentavam sobreviver em Roraima realizando trabalhos que pagavam diária, mas que tinham periodicidade incerta. O acesso maior ao emprego formal faz uma diferença muito grande”, diz Paulo Sérgio.
Pandemia
A pandemia de covid-19, no entanto, trouxe novos desafios tanto para os venezuelanos quanto para a gestão da Operação Acolhida. A logística para garantir a interiorização exige maior cautela. Além da documentação regularizada, para ser beneficiário da estratégia de interiorização, o interessado precisa obter as vacinas obrigatórias contra febre amarela, sarampo e difteria. Com a pandemia, a verificação médica para saber se há condições de viagem passou a ser ainda mais criteriosa.
“Mesmo com a crise pandêmica, uma crise dentro da crise, a operação não parou e registramos 19 mil interiorizações só no ano passado”, informou o general Antônio Manoel de Barros, coordenador operacional da Operação Acolhida, durante exposição no evento que celebrou os 50 mil interiorizados.
Por outro lado, a pandemia provoca uma redução no fluxo de entrada no Brasil. “A fronteira está fechada desde março do ano passado. Há um fluxo menor, de pessoas que acabam usando vias alternativas e informais”, comenta Paulo Sérgio.
O oficial da Acnur observa que os venezuelanos que estão no Brasil têm demonstrado certa capacidade para atravessar a crise. “O novo estudo mostra que a grande maioria das pessoas continua integrada. A interiorização tem assegurado um processo de inserção socioeconômico sustentável. A pessoa consegue estabelecer redes de contato na região e daí, acesso ao trabalho. Claro que muitas perderam o emprego com a pandemia, mas a resiliência dessas pessoas é maior. Então, muitas vezes, conseguiram se recolocar ou encontrar outros caminhos para a geração de renda”.