ELEIÇÕES

Intolerância após 2º turno amplia conflitos familiares com insultos e expulsão de casa

Especialistas dizem que debate político é saudável, mas que é preciso haver respeito ao contraditório

Apenas 6% rejeitam tanto Lula quanto Bolsonaro, diz Datafolha (Fotos: Divulgação)

O clima de polarização política que tomou conta do país durante as eleições deste ano não gera conflitos apenas nas ruas, mas também invade as casas dos eleitores e acirra os ânimos entre familiares.

Logo após a vitória do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último domingo (30), surgiram nas redes sociais relatos sobre agressões motivadas pelo resultado do pleito. São casos que vão desde ofensas verbais a pais tentando expulsar filhos de casa em razão de divergências políticas.

Uma internauta escreveu no Twitter que recebeu um áudio no qual a mãe diz que a jovem não tem caráter por ter votado em Lula. Outra diz que o sogro parou de falar com o próprio filho porque o rapaz votou em Bolsonaro.

Na família de Paola Belchior, 38, o clima também é de tensão. Isso porque a mãe da administradora pública é eleitora de Bolsonaro, enquanto o resto da família votou no candidato petista.

Desde que o resultado foi anunciado, Paola diz que a mãe se afastou dos parentes e não voltou a falar no grupo da família no WhatsApp.

“Ela era muito participativa. Mandava fotos e perguntava como a neta estava. De repente, veio esse silêncio e a gente não sabe o que está acontecendo”, diz Paola, acrescentando que está preocupada com a saúde mental da mãe.

“Não sei até que ponto ela pode cometer algo contra si mesma ou contra outras pessoas por causa desse radicalismo que a igreja e o governo Bolsonaro pregam.”

Apesar da preocupação, ela afirma evitar que a mãe frequente a sua casa. “Não quero que ela ensine esse radicalismo para a minha filha.”

A Folha deixou mensagem e ligou para a mãe de Paola, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Casos de conflito como esse cresceram em relação ao período anterior às eleições, diz Fábio Roberto Rodrigues, professor de psicanálise da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

“Percebi um aumento exponencial no atendimento desses casos. De 2018 para cá, aumentaram muito os conflitos e as rupturas de relacionamento”, diz ele, que é coordenador do grupo de pesquisa psicanálise e política.

O especialista afirma que optar pelo silêncio, como fez a mãe de Paola, é uma estratégia comum diante de desentendimentos políticos na família.

Segundo ele, isso acontece para evitar que os conflitos piorem e porque o discurso extremista inviabiliza abertura ao contraditório. Por isso, adeptos desse ideário podem se afastar do que não está de acordo com sua visão de mundo.

Escolher esse caminho, porém, pode gerar prejuízos emocionais. “As pessoas ficam sob o efeito do que Freud chamou de recalcamento, o que pode causar depressão e mal-estar”, diz ele. “As pessoas estão perdendo muito mais do que uma companhia de esquerda. Elas estão perdendo filhos e filhas.”

Segundo pesquisa Datafolha realizada de forma presencial com 2.556 pessoas no final de julho, 49% dos eleitores deixaram de falar sobre política com pessoas próximas. A situação atinge 54% dos que declaravam voto em Lula e 40% dos que apoiavam Bolsonaro.

Diretora da clínica psicológica Ana Maria Poppovic, da PUC-SP, Marcia Almeida Batista diz que a polarização política tem intensificado conflitos familiares.

Ela afirma, no entanto, que existe uma ideia equivocada de que a família é o lugar onde prevalece apenas amor e tranquilidade. “Temos uma fantasia de que só porque somos da mesma família queremos as mesmas coisas, o que não é verdade. Podemos ter visões diferentes.”

Além disso, ela explica que a família é uma instituição social e, portanto, é natural que haja conflitos. “Quando tem um clima de polarização e disputa na sociedade, isso gera reverberações dentro de todas as instituições, como escola, empresas e, inclusive, na família.”

A diferença, diz Márcia, é que conflitos entre familiares costumam ser mais dolorosos do que desentendimentos entre colegas de trabalho.

Segundo ela, isso acontece porque as pessoas enxergam a família como um espaço de produção de afetos, visão que, em geral, não se estende a empresas e escolas. “Mas a família não é só esse lugar. O afeto pode surgir em qualquer ambiente.”

Para evitar dores emocionais geradas pelos embates, a especialista recomenda não ignorar os conflitos políticos, e sim reconhecê-los para buscar o diálogo e o entendimento. “A questão não está em expor o conflito, mas sim no modo como a gente vai mostrá-lo para o outro”, diz ela.

Doutora em psicologia social pela USP e diretora da consultoria Mátria, Clélia Prestes faz coro a essa opinião. De acordo com ela, política precisa ser um assunto debatido e não deve ser vista como responsável por afastamentos.

“A conversa franca sobre política pode favorecer a saúde mental das pessoas, especialmente das que são alvo de discriminação e que, por meio da conversa, podem compartilhar sua situação e buscar ajuda.”

A especialista enfatiza, porém, que o debate de ideias é diferente da briga acalorada. “O que pode estremecer vínculos familiares não é a política, e muito menos o debate respeitoso, e sim a intolerância e a dificuldade de aceitar opiniões diferentes”, diz ela.