Invasões e garimpo em terras indígenas aumentaram 180% sob Bolsonaro, diz relatório
Conselho Indigenista Missionário afirma que violência recorde é efeito de medidas do Executivo
O Brasil registrou 305 casos de invasão, exploração ilegal e danos a 226 terras indígenas de 22 estados em 2021, um recorde. O total representa um aumento de 180% em relação aos números de 2018, último antes do início da gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Os dados fazem parte do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil lançado nesta quarta-feira (17), pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), órgão ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
O documento aponta que 2021 pode ter sido “para muitos povos, o pior ano deste século”. É o sexto ano consecutivo que o levantamento registra aumento na quantidade de casos de violência contra povos indígenas, problema intensificados durante o atual governo.
Entre os povos mais afetados estão os yanomamis (em Roraima e no Amazonas), os mundurukus (Pará), os pataxós (Bahia), muras, (Amazonas), uru-eu-wau-waus e karipunas (Rondônia), chiquitanos (Mato Grosso) e kadiwéus (Mato Grosso do Sul).
Roberto Liegbott, um dos coordenadores do Cimi e do relatório, afirma que há 20 anos não via uma situação de tanta tamanha vulnerabilidade dos indígenas.
Para ele, isso é consequência dos recordes de desmatamento e do que classifica de políticas anti-indigenistas do atual atual governo.
Cita, por exemplo, o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Xavier da Silva, que já pediu a abertura de investigações contra defensores da pauta ambiental e é considerado alinhado à pauta ruralista.
Questionada sobre os fatos expostos no levantamento do Cimi, a fundação não respondeu.
De acordo com o relatório, a escalada das invasões está relacionada a uma série de medidas do poder Executivo que favoreceram a exploração e a apropriação privada de terras indígenas.
É o caso de medidas como a Instrução Normativa número 9, publicada pela Funai em 2020, que permitiu a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas, e a instrução conjunta com o Ibama que permitiu a exploração econômica de terras indígenas por associações e organizações compostas por indígenas e não indígenas.
Além disso, o texto indica que o atual presidente e seus aliados no Congresso fizeram avançar projetos de lei que dificultam a demarcação de terras indígenas ao adotar a tese do marco temporal e que permitem mineração nesses territórios.
Em 2021, uma grande articulação de organizações de povos indígenas em torno da Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) promoveu acampamentos em Brasília e manifestações públicas de repúdio a esses projetos.
Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro tem cumprido a promessa de campanha de não demarcar “um centímetro” de terra indígena no Brasil. Por causa disso, o Ministério Público Federal entrou com 24 ações civis públicas cobrando providências da Funai e da União, segundo o Cimi.
O relatório identificou que das 1.393 terras indígenas no Brasil, 871 (62%) seguem com pendências para regularização e, destas, 598 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas que não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo de demarcação.
O Cimi considera como áreas pertencentes aos povos não só aquelas homologadas pelo governo federal, mas todos os territórios reivindicados pelas comunidades, mas que não foram alvo de qualquer providência administrativa por parte da Funai.
O relatório afirma que o aumento quantitativo de casos e terras afetadas pela ação ilegal de garimpeiros, madeireiros, caçadores, pescadores e grileiros, foi simultânea à intensificação da truculência desses agentes nos territórios indígenas.
Exemplo disso é a Terra Indígena (TI) Yanomami, onde atuam mais de 20 mil garimpeiros, com registros de ataques armados contra comunidades indígenas. Já no Pará, garimpeiros atacaram a sede de uma organização de mulheres indígenas e fizeram ameaças de mortes a lideranças.
O documento, de 281 páginas, traz o detalhamento dos casos, a partir de notícias da imprensa e relatos colhidos pelo próprio Cimi, que incluem casos de feminicídio, dilaceramento, envenenamento, esfaqueamento, enforcamento e afogamento.
“A crueldade se identifica com o período mais brutal de colonização que o Brasil teve, e isso nos impactou muito. Há uma desumanização dos povos indígenas, uma identificação do ‘mau selvagem’ que precisa ser combatido, um ambiente que se criou muito por conta dos discursos de ódio disseminados pelo governo”, afirma Liegbott.
Segundo Lúcia Helena Rangel, antropóloga do Cimi, “esses tópicos de violência parecem narrativas de roteiros de séries e filmes de horror, ou relembram os registros históricos dos períodos em que os indígenas eram caçados por bugreiros, bandeirantes e escravagistas”, comparou.
Em 2021, fontes públicas registraram 176 assassinatos de indígenas, seis a menos do que em 2020, ano do número recorde desde o início da análise, em 2014. Já o número de suicídios no ano passado foi de 148, foi o maior já registrado pelo Cimi.
Os registros totalizam 355 casos de violência contra pessoas indígenas em 2021, num aumento de 17% em relação a 2020. Trata-se do maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado.
Liegbott afirma que há uma grande subnotificação desses registros.
O relatório também registra casos de assassinatos de jovens e crianças indígenas praticados com extrema crueldade e brutalidade. Causaram comoção, em 2021, os assassinatos de Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, 11 anos, e Daiane Griá Sales, 14, do povo Kaingang. Ambas foram estupradas e mortas.
“O discurso do governo tem três características: primeiro, desumanizar, dizer que se pode invadir a terra porque esse sujeito não tem direito a ter direito; segundo, dizer que eles são improdutivos e, portanto, ‘ocupem os territórios e explorem’; terceiro, que eles são privilegiados no ambiente jurídico, que eles têm terras demais”, afirma.
“Retoma-se o discurso de que só há a possibilidade dos indígenas subsistirem se eles forem integrados à sociedade brasileira, o que é retomar uma tese genocida da ditadura militar”, completa.