LGBTQIA+

Jovens trans com atendimento especializado têm menos pensamentos suicidas

Resultados são de um estudo publicado no periódico científico médico Jama Network Open em fevereiro deste ano

(Foto: Reprodução Redes Sociais)

Adolescentes transgêneros e não binários que receberam atendimento de saúde especializado, incluindo tratamento hormonal de afirmação de gênero e bloqueadores de puberdade, tiveram uma redução de 60% de quadros de depressão e 73% nos pensamentos suicidas um ano após o início do atendimento.

Além disso, os jovens que não tiveram acesso a esses serviços apresentaram um risco duas vezes maior de desenvolver depressão moderada a grave três meses após o início do acompanhamento médico e quase três vezes mais de desenvolver pensamentos suicidas ou tentativas de autoflagelação seis meses após o acompanhamento.

Os resultados são de um estudo publicado no periódico científico médico Jama Network Open em fevereiro deste ano. No dia 31 de março é celebrado o Dia Internacional da Visibilidade Transgênero, data dedicada a aumentar a conscientização sobre o preconceito e a discriminação enfrentados por esse grupo de indivíduos.

A pesquisa buscou avaliar o efeito de terapias afirmativas na saúde mental de adolescentes e jovens transgêneros e não binários de 13 a 20 anos de idade. Os pacientes foram recrutados em uma clínica especializada em Seattle, nos Estados Unidos, e acompanhados por um ano.

Dos 104 participantes do estudo, 63 eram indivíduos transmasculinos (homens trans), 27 eram transfemininos (mulheres trans), 10 eram não binários e 4 não responderam sobre qual a sua identidade de gênero.

No início da pesquisa, 59 (56,7%) eram diagnosticados com depressão moderada a grave, 52 (50%) tinham sintomas de ansiedade e 45 (43,3%) reportaram pensamentos suicidas ou autoflagelação.

Dois terços dos pacientes (66,3%) receberam bloqueadores de puberdade, hormonoterapia ou ambos, enquanto um terço (33,7%) não receberam nenhum medicamento ou bloqueador hormonal.

Após um ano da terapia afirmativa, o desenvolvimento de algum tipo de depressão foi reduzido em 60% e o de pensamentos suicidas, em 73%. Não houve nenhum efeito do tratamento na percepção de ansiedade.

Segundo os autores, o estudo mostra que o atendimento médico especializado, incluindo o uso de hormonoterapia, pode reduzir a depressão e as tentativas de suicídio em jovens transgênero em um período relativamente curto, de um ano.

Apesar dos resultados positivos, os autores afirmam que a piora da saúde mental nos primeiros meses do acompanhamento dos pacientes, tanto em relação à ansiedade quanto à depressão, pode estar associada também a uma expectativa elevada dos jovens ao começar um tratamento afirmativo de ver resultados imediatos.

A realidade é similar à experiência vivida por Yu Golfetti, bióloga e líder de inteligência de negócios na empresa Pipo Saúde. Ela, que se reconhece como mulher transgênero, não teve um acompanhamento psicológico adequado no início da sua transição, o que fez com que passasse por um momento de forte depressão.

“Hoje eu sei, só que na época ainda não tinha sido diagnosticada, mas eu tenho depressão e ansiedade e sem acompanhamento psiquiátrico ou psicológico, comecei a automedicação [de hormônios]”, conta.

“Demorei a me aceitar, aceitar as mudanças no meu corpo e na minha voz. Se tivesse tido acompanhamento, a história teria sido totalmente diferente”, diz.

Naquela época, ela estava finalizando a faculdade e depois iniciou mestrado em zoologia -e a bolsa de pesquisa não possibilitava pagar por um atendimento psicológico.

“Por minha formação, até posso dizer que sei que a automedicação era errada e isso, inclusive, me fez parar. Passei por um momento muito difícil, de abstinência do tratamento, e naquela época tive ideias suicidas”, relata.

A situação só foi melhorar quando ela teve acesso a um atendimento especializado no Instituto de Psicologia da USP, de um profissional que tinha experiência em atender pessoas LGBTQIA+. Por fazer a pesquisa de mestrado também na USP, ela conseguiu atendimento gratuito com esse profissional.

“O fato de ter um atendimento de uma pessoa que tinha o mínimo de preparo sobre identidade de gênero e sobre o que uma pessoa LGBTQIA+ passa me ajudou nesse processo, porque eu sabia que não ia sofrer transfobia”, diz.

De acordo com João Guimarães Ferreira, endocrinologista e médico voluntário no Núcleo Trans da Unifesp, do ponto de vista de desfecho de saúde mental, a introdução da terapia com hormônio em jovens tem um índice de satisfação elevado.

“O tratamento hormonal oferecido a partir de 18 anos na população transgênero já possui portarias bem definidas e temos índices de satisfação excelentes”, diz.

O médico reforça como a prevalência de doenças mentais é elevada em pessoas transgêneros, acima da média da população geral. “Por isso faz parte do núcleo [em que ele trabalha] ter também profissionais psicólogos para fazer o acompanhamento”, afirma.

Outros levantamentos já apontam como pessoas transgêneros ou não binárias, especialmente os adolescentes, possuem um risco elevado de ter a sua saúde mental afetada, com depressão, ansiedade e pensamentos suicidas.

Uma pesquisa feita com 948 pessoas na Nova Zelândia e divulgada no dia 9 de março na revista especializada Family Practice apontou que apenas metade das pessoas transgênero recebe um atendimento médico especializado, incluindo o tratamento com o pronome adequado e respeito ao nome social.

No mesmo estudo, cerca de 57% das pessoas relataram terem sido tratadas da mesma maneira que outro paciente cisgênero, e quase a metade (47%) dos participantes disseram que tiveram que ensinar ao profissional de saúde como gostariam de ser tratados.

A principal reclamação dos pacientes no estudo foi o uso do pronome errado, seguida de perguntas invasivas e discriminação.

Para Ferreira, o treinamento das equipes de saúde que se propõem a atender populações trans e não binárias é essencial.

“Infelizmente, temos casos de profissionais [nos serviços de saúde] não usarem o nome social ou o pronome desejado, e isso faz com que haja o abandono do tratamento. Essa questão do acolhimento é muito importante do ponto de vista de evolução dos casos”, diz.