Justiça anula condenação de jovem negro com nome igual ao de suspeito branco
Há três anos, João Victor Nascimento tenta provar que não teve participação na morte de…
Há três anos, João Victor Nascimento tenta provar que não teve participação na morte de um motorista de aplicativo e que foi confundido com um rapaz branco também chamado João Victor.
Ele chegou a ser sentenciado a 30 anos de prisão pelo crime, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anulou a decisão nesta quarta-feira (12) porque seu advogado nem sequer havia sido intimado para participar da audiência quando foi condenado.
A falta de direito à defesa foi apenas uma das confusões dessa história, marcada por tantas incongruências que chamou a atenção da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro). O órgão incluiu João Victor no programa “Justiça para Inocentes”.
A reportagem do UOL procurou as polícias Civil e Militar do Rio, além do Ministério Público, em busca de um posicionamento a respeito do caso, mas não obteve resposta até a última atualização deste texto.
O crime que levou o jovem ao banco dos réus foi um arrastão ocorrido em 14 de dezembro de 2018, no bairro do Lins, na zona norte do Rio, que resultou na morte de uma pessoa. Ele foi condenado com base em distorções entre os depoimentos das vítimas à polícia e ao Ministério Público e em um reconhecimento fotográfico feito no celular dos policiais.
Como foi o caso?
No dia do crime, João Victor estava sentado na calçada da casa da avó junto de um colega. Um conhecido, chamado Gabriel, chegou dizendo que uma pessoa havia sido baleada a poucos metros dali. Pouco depois, uma viatura abordou os três. Essa versão é corroborada tanto pela polícia quanto pelos três rapazes.
Na mochila de Gabriel estava o telefone da vítima que havia sido assassinada. João Victor conta que, enquanto apontavam fuzis para eles, os policiais pediam para contarem onde estava o outro envolvido no crime. Só assim seriam liberados. Sem resposta, todos foram para a delegacia.
Antes de serem encaminhados, os jovens foram fotografados pelos policiais, que enviaram as imagens a colegas que estavam com as vítimas do arrastão. Das quatro testemunhas, três não reconheceram João Victor, nenhuma reconheceu o amigo e todas reconheceram Gabriel, à época menor de idade.
Gabriel confirmou sua participação no arrastão e negou ter atirado no motorista, mas afirmou que o seu comparsa era outro João Victor, um rapaz branco que fugiu. Disse ainda que os dois levados à delegacia nada tinham a ver com o ocorrido.
A declaração coincide com o que foi dito por testemunhas e vítimas do arrastão. Elas disseram que o crime foi cometido por um rapaz negro e outro branco. Gabriel, que confessou, é negro, assim como João Victor Nascimento.
A respeito do caso, a OAB afirma que o reconhecimento por foto é uma prática arbitrária e que motiva a ida de inocentes à cadeia. A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem enviou um ofício ao desembargador responsável pelo caso de João Victor em que atesta que a atribuição do crime foi feita com base na “precariedade do reconhecimento por foto, realizado por autoridade incompetente, sem confirmação robusta e indubitável durante a instrução da ação penal”.
Conclusão diferente de relatos de testemunhas
Nenhuma testemunha afirmou que o arrastão foi cometido por três pessoas. Mas o Ministério Público do Rio de Janeiro chegou a essa conclusão. Assim, indiciou Gabriel e os dois homens chamados João Victor.
Em depoimento, Jaqueline, uma das vítimas, reconheceu apenas Gabriel, descartou os outros dois detidos e negou haver uma terceira pessoa. Roberto, uma vítima que quase teve o carro levado, foi enfático ao não reconhecer João Victor Nascimento: eram apenas dois indivíduos, um negro e um branco. Apenas uma das testemunhas diz ter visto duas pessoas negras. Ninguém envolveu três pessoas no crime.
Após a madrugada na delegacia, Gabriel foi levado ao Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), para menores infratores. Já João Victor foi encaminhado para o presídio de Benfica. O terceiro jovem foi liberado.
Como o crime ocorreu em uma sexta, João Victor só passou pela audiência de custódia após o fim de semana —por lei, isso deveria ocorrer em 24 horas. Ele acabou sendo liberado, porque os depoimentos foram considerados incongruentes.
“Em que pese a gravidade do crime praticado, ao menos em análise superficial, os indícios de autoria não são suficientes para a imposição da prisão. Isso porque as versões narradas pelas vítimas levantam dúvida razoável quanto à eventual participação do custodiado’, disse Pedro Ivo Martins Caruso D’Ippolito, juiz da Central de Audiência de Custódia.
Apesar de curto, o período na prisão agravou sua condição de saúde. Ele tem doença de Crohn, que inflama o aparelho gastrointestinal. Sem conseguir trocar a bolsa de colostomia, voltou para casa com feridas e furúnculos.
Em maio de 2019, ele estava internado para tratar da doença, quando recebeu um mandado de prisão. Saiu do hospital direto para o presídio. Foi para o regime domiciliar por causa da condição de saúde e continua assim desde então. Perdeu o emprego de assistente administrativo e interrompeu o sonho de cursar faculdade de fisioterapia.
O UOL acompanhou uma das audiências do caso, em julho de 2019. Nela, foram ouvidos dois policiais que confirmaram a versão contada por João Victor de que encontraram os três meninos na calçada. Jaqueline não compareceu. Roberto disse só reconhecer Gabriel, o menor envolvido, e o “branquinho”. Ele também afirmou que havia sido designado apenas para a audiência de Gabriel e não sabia por que estava ali.
Desde então, novas provas não foram incluídas no processo, mas João Victor foi condenado a 30 anos por latrocínio em novembro de 2020.
A acusação do MP também traz horários diferentes dos relatados pelas testemunhas em depoimento. Ainda consta o relato de que a polícia teria abordado os suspeitos dentro de um carro. Uma versão completamente diferente da apresentada por todas as partes, incluindo os próprios policiais que levaram os três jovens para a delegacia.
Agora, uma nova data para a audiência em segunda instância será marcada. Desta vez, com o direito à sustentação oral da defesa. O caso de João Victor Nascimento não é único. Dados da OAB-RJ mostram que 70% dos acusados injustamente por reconhecimento fotográfico são negros.