Justiça determina que Sorocaba (SP) interrompa propagandas sobre ‘kit Covid’
Em caso de descumprimento, prefeito terá de pagar multa de R$ 50 mil e poderá responder por crime de responsabilidade
A Vara da Fazenda Pública da Comarca de Sorocaba determinou que a Prefeitura de Sorocaba interrompa qualquer propaganda institucional que promova uma suposta eficácia do chamado tratamento precoce contra a Covid-19, que consiste no uso de medicamentos como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina contra o coronavírus. Estudos apontam que eles não são capazes de prevenir ou tratar a doença.
A juíza Karina Jemengovac Perez fixou em R$ 50 mil a multa por publicação contrária ao determinado, que será de responsabilidade do prefeito, Rodrigo Manga (Republicanos), “de modo a não onerar o erário”. O prefeito também poderá responder por crime de responsabilidade. Cabe recurso.
A decisão ocorre depois de a prefeitura da cidade do interior paulista publicar uma série de posts nas redes sociais e um texto em seu site oficial nos quais alegou que havia constatado, em estudo, 99% de eficácia no chamado tratamento precoce.
“A divulgação desse dado pela imprensa institucional é no mínimo preocupante, quiça falaciosa”, afirmou a juíza em sua decisão. “É fato notório que não há base científica para a pesquisa pueril realizada pela municipalidade.”
Os textos diziam que a 122 de 123 pacientes monitorados pela Secretaria Municipal de Saúde estavam “curados em domicílio” após usar o vermífugo ivermectina e o antibiótico azitromicina.
Após críticas, a palavra “estudo” foi trocada por “levantamento”, e o texto passou a dizer que ele apontava “99,19% de recuperados e 0,81% de letalidade entre pacientes monitorados com sintomas da Covid-19 que fizeram tratamento precoce em Sorocaba”.
Mais tarde, nova modificação foi feita, para dizer que “levantamento preliminar aponta excelentes resultados entre pacientes monitorados com sintomas da Covid-19 que fizeram tratamento precoce em Sorocaba”. Um asterisco explicava, em letras bem menores, que de 123 pacientes monitorados, 122 se recuperaram.
Procurada pela Folha, a prefeitura informou que o monitoramento dos 123 pacientes foi feito por telefone e que não se tratava de um estudo científico.
“Exige-se extrema responsabilidade do gestor público na divulgação de dados, sobretudo diante do estágio crítico atualmente vivenciado, estando o estado de São Paulo na fase vermelha depois de sair de uma fase emergencial. Nesse panorama, qualquer publicação que veicule a eficácia de um tratamento contra a Covid-19 deve se basear em estudos rigorosos, com todas as pesquisas exigidas, o que não se vê das publicações municipais, com dados frágeis, sem comprovação científica ou recomendação da agência de saúde”, afirmou a juíza.
“A meu ver, as publicações podem gerar um efeito reverso, no sentido de criar um destemor da população para com o vírus, sob as vestes de um eventual tratamento eficaz (‘kit Covid’).”
A decisão se originou a partir de ação popular a que se somou manifestação do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Médicos e pacientes têm relatado efeitos coletarais graves com o uso contínuo e inadequado desses medicamentos, como arritmia e hepatite medicamentosa (lesões no fígado, órgão que metaboliza as drogas).
Diversas entidades científicas e sanitárias, como a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB), afirmam que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce para a Covid-19 até o presente momento.
Segundo um caso documentado pelo Hospital das Clínicas da Unicamp, uma pessoa saudável desenvolveu hepatite medicamentosa após contrair o coronavírus em dezembro e ser medicada com as drogas do “kit Covid”. O paciente entrará para a lista de transplante de fígado, segundo Ilka Boin, professora da Unicamp e diretora da unidade de transplante hepático da universidade.