Levantamento mostra que pelo menos 1.774 pessoas morreram no país em acidentes que poderiam ser evitados ou atenuados
Roteiros das grandes tragédias do país têm em comum a negligência e a impunidade
Um histórico de negligência, omissões e impunidade une grandes tragédias ocorridas no Brasil nos últimos 12 anos aos desastres que causaram, recentemente, a morte de 182 pessoas na barragem de Brumadinho (MG), nas chuvas do Rio de Janeiro e no incêndio do Centro de Treinamento do Flamengo.
Levantamento feito pelo GLOBO mostra que ao menos 1.774 pessoas morreram desde 2007 em acidentes aéreos, desabamentos, incêndios e naufrágios que poderiam ter sido evitados ou, ao menos, atenuados se regras tivessem sido seguidas, fiscalizações feitas corretamente e os alertas, respeitados. Como disse a procuradora-geral Raquel Dodge na semana passada, ocorre no Brasil “uma sucessão de fatos e desastres evitáveis”.
Embora tenham deixado milhares de vítimas, essas tragédias não geraram uma única condenação na Justiça até hoje.
— Empresas e agora até um clube de futebol mostram que não têm condutas adequadas do ponto de vista da segurança. Muitas vezes veem o item como um custo a ser reduzido. Há falhas de fiscalização por parte da boate Kiss, do Flamengo, da Samarco e do que até agora está se revelando no caso Vale — diz o procurador José Adércio Leite, que participa das investigações sobre o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho.
Até agora, a investigação em Minas aponta que a Vale foi informada de problemas na drenagem e nos aparelhos de medição antes de 25 de janeiro, quando a barragem rompeu.
ENCHENTES COM MORTES
No Rio, mortes causadas por enchentes e deslizamentos, como as da última quarta-feira, remontam a um problema histórico de ocupação em áreas de risco. Já o CT do Flamengo, que pegou fogo sexta-feira, não tinha certificado dos bombeiros nem alvará e foi autuado 30 vezes pela prefeitura.
— O poder público não fiscaliza. E, por outro lado, os princípios fundamentais da segurança dessas operações não são obedecidos pelas empresas — afirma o engenheiro Celso Atienza, conselheiro da Associação Paulista dos Engenheiros de Segurança do Trabalho. — No Brasil, o pessoal empurra com a barriga. Sabe que tem problema, que está errado, mas continua fazendo.
A palavra negligência aparece explicitamente em duas investigações feitas em tragédias dessa década. No relatório da Polícia Federal (PF) sobre o desastre de Mariana (MG), em 2015, a mineradora Samarco não tomou providências em relação a problemas na barragem que rompeu e que haviam sido identificados em 2014. Sete pessoas foram indiciadas pela PF, entre executivos e engenheiros. Mais de três anos depois, o julgamento, no entanto, ainda não aconteceu.
Também foi a negligência, segundo conclusão da Marinha, que levou 19 pessoas à morte em 2014 no naufrágio da lancha Cavalo Marinho I, entre Itaparica e Salvador (BA). A investigação culpou o dono e o comandante da lancha por alterarem pesos usados para manobras e por terem deixado a embarcação sair num clima adverso. Eles não foram julgados ainda.
Em 2013, o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), deixou 242 mortos. Uma série de problemas levou o Ministério Público a pedir a punição dos donos do local e dos músicos que se apresentaram na noite da tragédia. A boate tinha apenas uma saída, não tinha sinalização de emergência nem chuveiros automáticos, além de teto inflamável, em desacordo com a lei municipal. O julgamento ainda não foi marcado devido a recursos.
ACIDENTE DA TAM
Negligência
Pilotos reclamavam das condições ruins de Congonhas em dias de chuva. Diretor de Segurança de Voo da TAM sabia do estado do aeroporto, e a Anac liberou as pistas sem as ranhuras para evitar derrapagens.
O que houve depois
Inquérito da PF não apontou culpados. O MPF denunciou o então diretor da TAM, Marco Castro, e a então diretora da Anac, Denise Abreu. Ambos foram inocentados.
ENCHENTE NO VALE DO ITAJAÍ
Negligência
Sem um planejamento de ocupação do solo, o crescimento desordenado levou centenas de famílias a morar em áreas de risco. Não havia sirenes de alerta.
O que houve depois
Em 2011, o prefeito de Barra Velha, Samir Mattar (PMDB), foi afastado do cargo por uma suspeita de desvio de verbas destinadas a obras após a enchente. Ele voltou ao posto um ano depois.
CHUVAS DE 2010 (RIO E NITERÓI)
Negligência
Entre as ocorrências, um deslizamento no Morro do Bumba, em Niterói, matou 48. Os imóveis ficavam sobre um antigo lixão. Um ex-secretário disse ter alertado para o risco.
O que houve depois
O então prefeito Jorge Roberto Silveira foi investigado por negligência. Sua única penalização ocorreu em 2014, quando o TCE o multou por irregularidades no atendimento às vítimas das chuvas.
ENCHENTE NA REGIÃO SERRANA
Negligência
A crescente ocupação irregular das encostas e a falta de sistemas de alerta, como o uso de sirenes, contribuíram para a maior tragédia do país provocada por causas naturais. Ainda há desaparecidos.
O que houve depois
Após a tragédia, prefeitos das cidades de Teresópolis e Nova Friburgo foram afastados por desviar verbas federais, mas não houve condenação pelo desastre.
EXPLOSÃO NO FILÉ CARIOCA
Negligência
De 2008 a 2011, o restaurante funcionou com alvará provisório por ter pendências com os Bombeiros e a prefeitura.
O que houve depois
O MP abriu dois processos, mas não há desfecho dos casos. Dez pessoas foram denunciadas criminalmente, entre elas o dono e o gerente do restaurante. Há ainda uma ação contra servidores municipais que teriam sido negligentes na fiscalização.
DESABAMENTO DO EDIFÍCIO LIBERDADE
Negligência
A empresa Tecnologia Organizacional fez obras no prédio sem, como prevê a lei, o acompanhamento de um engenheiro.
O que houve depois
A Polícia Civil indiciou sete pessoas. Segundo o MP, o síndico foi negligente ao permitir a obra. Em 2015, a Justiça absolveu os acusados, aceitando o argumento que outros fatores contribuíram para o desastre, como as obras do metrô nos anos 1970.
INCÊNDIO NA BOATE KISS
Negligência
Lotada, a casa tinha apenas uma saída, sem sinalização de emergência nem chuveiros automáticos, e o teto era inflamável, em desacordo com a lei municipal.
O que houve depois
O MP denunciou os sócios da boate e os integrantes da banda que tocava na hora do incêndio. O caso nunca foi julgado e houve uma série de recursos. A discussão foi parar no STJ, que ainda não se pronunciou.
TRAGÉDIA DE MARIANA
Negligência
Polícia Federal apontou falhas de segurança, manutenção e problemas na construção da barragem. Segundo a PF, Samarco sabia dos riscos desde o ano anterior à tragédia.
O que houve depois
Ninguém foi punido. Ministério Público entrou com ação penal, que ainda não foi julgada. Empresas responsáveis pelo acidente não pagaram multas ambientais de R$ 250 milhões.
NAUFRÁGIO NA BAHIA
Negligência
A embarcação passou por mudanças após a vistoria feita pela Marinha, o que é irregular. O comandante poderia ter voltado por causa da chuva e dos ventos fortes.
O que houve depois
A Marinha identificou três responsáveis pela negligência e imprudência. Eles alteraram os pesos usados para manobras e deixaram a lancha sair num clima adverso. O processo ainda está na primeira instância.
DESABAMENTO NO LARGO DO PAISSANDU
Negligência
Em 2015, os bombeiros relataram irregularidades no prédio, e o Ministério Público abriu inquérito. No entanto, a prefeitura permitiu a ocupação irregular e o MP não levou adiante a investigação pedida pelos bombeiros. Os responsáveis pela ocupação, ainda que irregular, não tomaram os cuidados de segurança.
O que houve depois
Até o momento, ninguém foi punido.