Não peronista

Macri deixa Argentina com legado econômico sofrível

Desde o primeiro dia de governo, disse ter recebido uma "herança maldita", referindo-se ao estado da economia durante o mandato de Cristina Kirchner

Macri deixa Argentina com legado econômico sofrível

Três dias antes de Alberto Fernández assumir a Presidência argentina, o atual ocupante da Casa Rosada, Mauricio Macri, despede-se de seus apoiadores neste sábado (7), na Praça de Maio.

Em clima de terapia, Macri passou a última semana relembrando momentos de sua gestão em postagens na internet e em um pronunciamento em cadeia nacional na TV. Publicou nas redes sociais pequenos vídeos nos quais reviveu passagens de sua gestão e, num comunicado à nação, na quinta-feira (5), se disse frustrado com o desempenho econômico do país.

Justificou, porém, seu fracasso com fatores alheios às suas medidas: a forte seca que em 2017 e 2018 comprometeu a colheita de soja e os efeitos do clima de guerra econômica no panorama internacional.

Também disse que a Argentina é hoje “um país mais tolerante”, onde há menos divisões na sociedade e as instituições e estatísticas são mais confiáveis. Assim, Macri tenta deixar o poder com pose de democrata, que aceita a derrota nas urnas e que quer liderar uma “oposição construtiva” -esse é seu discurso desde 27 de outubro, quando perdeu em primeiro turno.

Mas o primeiro presidente não peronista a finalizar seu mandato não deixa o país em boas condições. Desde o primeiro dia de governo, disse ter recebido uma “herança maldita”, referindo-se ao estado da economia durante o mandato de Cristina Kirchner (2007-2015) e entrega um legado negativo na área, o que se transformou na maior preocupação do futuro governo.

Macri tampouco teve estabilidade política na economia. Após três titulares da Fazenda -Alfonso Prat-Gay, Nicolás Dujovne e Hernán Lacunza-, dividiu o ministério em subpastas porque preferia o “trabalho em equipe em vez de superministros”.

Mesmo assim, não evitou grande desvalorização do peso -se US$ 1 custava 14 pesos quando assumiu, agora custa 62,25 pesos. Os salários não acompanharam esse ritmo.

Também houve aumento da inflação, que deve fechar o ano em 55%, e do número de pobres, de 28,5% em 2015 para 40% quatro anos depois.

No meio do caminho, endividou ainda mais o país devido a um déficit orçamentário crônico que não pôde resolver.

Uma linha de crédito com o FMI (Fundo Monetário Internacional) foi aberta, e a Argentina contraiu um empréstimo de US$ 57 bilhões (R$ 236 bilhões) –a remessa que falta, de US$ 11 bilhões, foi dispensada por Fernández, cujo principal desafio é definir como pagará o que já foi gasto.

A estratégia de não realizar um choque neoliberal de uma só vez tampouco funcionou. Adotou o “gradualismo”, ou seja, reformas, ajustes, fim de subsídios e enxugamento da máquina pública, mas tudo paulatinamente.

O fracasso se deve principalmente às tarifas a conta-gotas, o que ampliava seu desgaste político a cada anúncio. Depois, a promessa de uma “chuva de investimentos” também não se concretizou, dessa vez por conta da desaceleração internacional.

Macri encontrou muito mais dificuldades para derrubar travas protecionistas do que pensava e, no fim, acabou mantendo muitas delas, especialmente na agroindústria.

Entre os legados positivos, ao menos segundo pesquisa do instituto Berensztein, estão os investimentos em infraestrutura (aprovados por 49%), o combate ao narcotráfico (47%) e o esforço para valorizar o funcionamento das instituições do país (43%).

Pode-se mencionar sobreo primeiro item, gastos em construções viárias, abertura de linhas aéreas entre as províncias sem necessidade de passar por Buenos Aires e obras de modernização na capital, como o Paseo del Bajo.

Já sobre o narcotráfico, houve mais apreensões e grande exploração midiática de cada uma delas, o que não significa a saída da rota do tráfico de drogas latino-americano.

É fato que a Justiça melhorou, embora siga lenta e sujeita a pressões políticas.

Mas colocou-se em prática, por exemplo, a Lei do Arrependido, parecida com o mecanismo da delação premiada no Brasil. Investigações de casos de corrupção avançaram.

Ao contrário do que muitas organizações de direitos humanos temiam, Macri não abafou nem colocou travas para frear os delitos de lesa-humanidade cometidos na ditadura militar (1976-1983).

Não concedeu anistia a genocidas, como pedia a ala mais à direita de seus apoiadores, e não deixou de dar dinheiro, como manda a Constituição, a instituições como as Avós da Praça de Maio –que busca filhos de desaparecidos– e a Equipe Argentina de Antropologia
Forense, que faz análises de ossadas para identificar corpos.

Macri também se saiu bem no flanco da política externa. O país recebeu visitas de presidentes norte-americanos –Barack Obama e Donald Trump– e franceses –François Hollande e Emmanuel Macron– e estabeleceu boas relações em seu continente com líderes de diferentes matizes ideológicas de Chile, Colômbia, Brasil e Uruguai. A Argentina ainda sediou, com sucesso, uma reunião do G20.

O esforço na liderança na pressão sobre o ditador venezuelano Nicolás Maduro foi crucial para a formação do Grupo de Lima. O órgão, por outro lado, não atingiu os resultados desejados até agora.

Com a família, Macri busca uma casa num subúrbio nobre de Buenos Aires. Deve manter um escritório no centro, onde pretende rearmar seu partido, o PRO (Proposta Republicana), e liderar a oposição ao governo kirchnerista.

Quatro anos depois, com números adversos na economia e uma derrota em primeiro turno para os rivais kirchneristas, Mauricio Macri entrega uma Argentina em depressão pós-tentativa de choque neoliberal.