Intolerância religiosa

Mãe perde guarda da filha após jovem participar de ritual do candomblé

Ação foi movida pelo Conselho Tutelar da cidade, que recebeu denúncias de maus-tratos e abuso sexual. adolescente chegou a relatar que não estava sofrendo qualquer tipo de abuso, mas, sim, passando por um ritual

Uma mãe de Araçatuba, no interior de São Paulo, perdeu a guarda da filha após a adolescente passar por um ritual de iniciação no candomblé, que envolve raspar a cabeça dos novos adeptos.

Uma mãe de Araçatuba, no interior de São Paulo, perdeu a guarda da filha após a adolescente passar por um ritual de iniciação no candomblé, que envolve raspar a cabeça dos novos adeptos.

A ação foi movida pelo Conselho Tutelar da cidade, que recebeu denúncias de maus-tratos e abuso sexual. Como uma delas foi feita pela avó da menina, que é evangélica, a defesa da família afirma que o caso é de intolerância religiosa.

No último dia 23 de julho, o conselho recebeu uma denúncia anônima dizendo que a jovem era vítima de maus-tratos e abuso sexual. Junto de policiais militares, os conselheiros foram até o terreiro.

A adolescente chegou a relatar que não estava sofrendo qualquer tipo de abuso, mas, sim, passando por um ritual. A mãe, que trabalha como manicure, explicou que, durante a cerimônia, a menina não poderia deixar o local.

Os nomes das duas foram suprimidos para não expor a identidade da jovem.

Exame e ritual

Mesmo com as justificativas, mãe e filha foram levadas para a delegacia. Só foram liberadas depois de a jovem passar por exame de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal), que não encontrou nenhum tipo de hematoma ou lesão. A adolescente só estava com a cabeça raspada — segundo ela, estava se tornando filha de Iemanjá.

Nestes rituais, chamados de feitura de santo, o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro. Durante o retiro espiritual, recebe banhos de ervas e é exposto a fundamentos da religião. A ideia é que ele se purifique, entre em contato com o axé (que, na língua iorubá, significa “força” ou “poder”) e, de acordo com a tradição, renasça conectado com valores ancestrais da crença. Deste ponto de vista, a passagem pelo terreiro é uma gestação. Raspar o cabelo é um ato sagrado e simboliza tudo isso.

“Nossos fundamentos e ritos estão garantidos por lei (…) Jamais devem ser confundidos com ato de tortura ou lesão corporal. Ressaltamos que, no Brasil, tais fundamentos são preservados há mais de 350 anos e, sendo de matriz africana, são fundamentados há séculos”, informou a Obadará Africanidade, centro cultural que representa religiões de matriz africana em Araçatuba

Ainda que não tenham surgido novos indícios de violência ou abuso, familiares que não concordam com a religião fizeram outra denúncia. Dessa vez, registraram um boletim de ocorrência em que apontaram que a adolescente estava sendo mantida à força no terreiro e sob condições abusivas. Isso fez conselheiros tutelares e policiais irem novamente até o local. Não encontraram ninguém, pois a adolescente já estava em casa.

Os familiares não desistiram e, junto do Conselho Tutelar, denunciaram o caso à Promotoria. Alegaram que houve lesão corporal por causa do cabelo raspado. Entraram na Justiça, que transferiu a guarda para a avó materna. Há uma semana, mãe e filha só conversam por celular e se veem durante visitas curtas.

Procurado pelo UOL, o Conselho Tutelar de Araçatuba não quis se pronunciar. Os familiares que estão com a guarda da adolescente também não quiseram falar sobre o assunto.

Frequentadora do candomblé há dez anos, a mãe diz nunca ter visto algo parecido. “O pior de tudo é que em nenhum momento ouviram minha filha ou a mim. Simplesmente a tiraram de mim. Eu nunca a obriguei a nada, esse sempre foi o sonho dela. Ela está chorando a todo momento, me liga de dez em dez minutos querendo vir para casa”, conta.

“Eu estou arrasada. Já estava antes por conta do preconceito. Agora que tiraram minha filha de mim, tiraram o meu chão. Nunca imaginei passar por isso por conta de religião. Eu estava presente o tempo inteiro, acompanhei tudo, nada de ilegal foi feito, que constrangesse a ela, ou que ela não quisesse, sem consentimento dela, ou sem o pai ou a mãe, foi tudo feito legalmente”, concluiu.

Rogério Martins Guerra, pai de santo da família, classifica a situação como lamentável. “Eu já vi perseguição, preconceito, pessoas que são agredidas e apedrejadas na rua, terreiros que são incendiados. Mas nunca algo assim. É uma tristeza profunda”, diz.

Para Thais Dantas, advogada do Instituto Alana, que atua em defesa de crianças e adolescentes, mecanismos institucionais não podem ser usados como instrumento de discriminação.

“O Estado não pode reproduzir nenhuma prática discriminatória, seja em relação à situação familiar, ao ambiente em que essa criança está ou à etnia, especialmente quando envolve religiões de matrizes africanas”.

Ela ressalta que a liberdade religiosa é garantida pelo ECA. Em 2016, a lei nº 13.257 garantiu a pais, mães ou responsáveis o direito de transmissão de suas crenças. Além disso, Dantas cita o artigo 5º da Constituição, que assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantia, na forma da lei”.

A advogada também analisa que situações como esta devem ser investigadas antes de qualquer ação da Justiça. “É fundamental que haja apuração e qualquer medida seja pautada pelos fatos, não por preconceito, ideias muitas vezes preconcebidas”, afirma.

Para a doutora em Ciência da Religião e pesquisadora da PUC-SP, Claudia Alexandre, há no caso um ataque à religião, o que evidencia como a sociedade está polarizada.

Eu vejo uma questão muito mais grave, que é como as pessoas não conseguem mais se relacionar, apartadas por um discurso de ódio, de odiar o outro, ao ponto de separar uma criança de sua família, por conta de uma confissão religiosa que o outro tem. É preciso repensar imediatamente em que sociedade estamos, se a lei realmente vai agir no caso do racismo. E quem vai restituir a saúde psicológica de uma criança que passa por uma situação como essa, da família e das pessoas do convívio religioso?
Claudia Alexandre, pesquisadora

Visitas

A mãe conta que as visitas são bem restritivas — ela só pode encontrar a filha pessoalmente por cerca de cinco minutos. A manicure diz que a filha relatou que estava sendo forçada a abandonar os preceitos que está seguindo em sua iniciação no candomblé.

Na semana passada, a mãe foi visitar a filha, mas a avó não deixou. A menina se revoltou e fugiu. A polícia a encontrou em uma praça próxima, de onde a levou dentro de uma viatura.

O caso segue em segredo de Justiça. A mãe quer a guarda de volta e aguarda o agendamento de uma audiência em que será ouvida pelo juiz, mas que ainda não tem data para acontecer.