"Missão Institucional"

Médica enviada para impedir aborto em menina diz que missão foi institucional

Comitiva foi apresentada em reunião com autoridades locais por emissária de Damares e tinha detalhes sigilosos sobre criança estuprada

A atuação da comitiva de médicas enviada à cidade de São Mateus (ES) para propor que uma menina de dez anos grávida após estupro tivesse o bebê, em vez de fazer um aborto legal, foi “institucional”, afirmou à Folha uma das participantes da equipe.O caso foi revelado no dia 21 em reportagem da Folha sobre a ação coordenada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, para tentar impedir que a vítima passasse pelo aborto legal. Por esse plano, a criança gestante seria colocada aos cuidados do Hospital São Francisco de Assis (HSFA), de Jacareí (SP), onde levaria a gravidez adiante.

Damares contestou a reportagem e a informação de que a missão de seu ministério tenha tratado de aborto. A menina cumpria duas pré-condições para realização do aborto legal: risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro. Ela e sua família haviam manifestado desejo de interromper a gravidez.

A assistente social Mariângela Consoli de Oliveira confirmou ter estado na reunião na sede da prefeitura de São Mateus, articulada pelo ministério de Damares para discutir o caso da menina. “Foi uma iniciativa institucional, não partiu de mim”, afirmou Mariângela à Folha, na sexta-feira (25). “Prefiro não falar sobre isso, porque isso aí já passou. Tudo o que eu fiz foi por trâmites legais.”

Ela é presidente da Associação Guadalupe, com sede em São José dos Campos (SP), que mantém um abrigo para gestantes em situações de vulnerabilidade recomendado por movimentos como o Brasil Sem Aborto.

Como presidente da associação, ela assina ofício em que teve conhecimento do caso de São Mateus e oferece suas dependências, funcionários e atividades terapêuticas para a menor e seu familiar responsável, “a fim de colaborar para o processo de enfrentamento e superação dos traumas sofridos”.

Em publicação nas redes sociais datado de 23 de janeiro de 2016, Mariângela recebe a ativista de extrema-direita Sara Giromini (Sara Winter) na sede da associação. “É uma menina dócil, mas que está sofrendo grandes perseguições das feministas”, diz Mariângela, que à época era diretora da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família.

Ex-funcionária do ministério de Damares, que já a chamou de filha, Giromini vazou a identidade da menina nas redes sociais, o que infringe o Estatuto da Criança e do Adolescente, e levou dezenas de manifestantes à porta do hospital onde ocorreria o procedimento para constranger a vítima e os médicos.

Questionada sobre a relação entre a associação e o hospital, Mariângela afirmou primeiro que “a gente é bem parceiro, é muito próximo”, e em seguida que “só se conhece” e “não tem muita relação”. Diante de novas perguntas, encerrou a entrevista.

Antes, a assessoria do HSFA negara ter enviado médicas a São Mateus, mas afirmara ter oferecido “ao juiz da comarca que acompanhou o caso sua estrutura física e técnica pelo fato de ser um hospital preparado para gestação de alto risco, caso a decisão fosse levar a gestação adiante, sendo tal oferta condicionada à autorização de representante legal e/ou da Justiça”.

No entanto, a Folha obteve relatos de que Elizabeth Kipman, ginecologista e obstetra no HSFA, fez contato por telefone e mensagem com autoridades locais nos dias anteriores à reunião, oferecendo os serviços do hospital.

Documento que lista os participantes da reunião em São Mateu traz seu nome, embora os presentes não confirmem sua participação. Em entrevista por telefone, Kipman disse que não esteve na cidade capixaba: “Tenho 78 anos agora em outubro, sou de risco [à Covid], não vou viajar e não estive em São Mateus”.

Depois, por email, respondeu que não se apresentou às autoridades locais e que desconhecia a reunião: “Tenho conhecimento de que partiu do hospital uma oferta de serviços médicos pelo fato de a instituição ser referência para partos de alto risco, caso a decisão dos representantes legais e/ou da Justiça fosse no sentido de dar continuidade à gestação”.

Embora todas tivessem sido apresentadas genericamente como médicas do HSFA conhecidas de Damares, nenhuma tinha vínculo direto com o hospital e apenas duas eram de fato médicas: a residente em urologia Rafaela Lima dos Santos e a infectologista Janaína Aparecida Schineider Casotti –esta última de Vitória (ES).

Outro membro foi a farmacêutica e bioquímica Renata Gusson Martins, ligada ao Movimento Mullheres pela Vida e apontada como porta-voz do grupo. A Folha tentou contato com Janaína, mas ela desligou assim que a repórter se identificou. As demais não atenderam.

A reunião na prefeitura durou quase cinco horas e teve a presença de dois representantes da ministra: Alinne Duarte de Andrade Santana, coordenadora geral de proteção à criança e ao adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, e Wendel Benevides Matos, coordenador geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. A eles se somaram o deputado estadual Lorenzo Pazolini (Republicanos) e assessores.

A ministra Damares Alves durante cerimonia de posse dos novos integrantes da comissão de anistia (Foto: William Meira – 27.mar.2019 / MMFDH)

Por parte do município estavam presentes a secretária de Ação Social, Marinalva Broedel; Susi Dante Lucindo e Romilson Candeias, do Conselho Tutelar local; e representantes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e da Casa Lar, que abrigava a criança desde a constatação da gravidez.

De acordo com relato à Folha, Alinne se levantou imediatamente para receber as médicas e falou em tom muito respeitoso sobre elas. Disse que sabia que viriam e as descreveu como voluntárias que saíam viajando pelo país oferecendo ajuda em nome do hospital, especialista em parto de risco.

Ainda segundo esse relato, o grupo chegou com um planejamento pronto sobre o que deveria ocorrer com a menina: o aborto não seria autorizado; em vez disso, a criança, acompanhada de um membro da família, seria levada para um abrigo de gestantes e teria acompanhamento no HSFA.

Questionadas sobre como elas tiveram acesso ao caso e se sabiam daquela reunião, as médicas responderam que haviam tido contato prévio com Susi, do conselho tutelar. Uma delas afirmou que a criança estava com 21 ou 22 semanas de gestação, um dado sigiloso.

Procurados, o promotor Fagner Cristian Andrade Rodrigues, responsável pelo caso, e a Vara da Infância e da Juventude não quiseram se manifestar.