‘Meu filho poderia estar vivo’: a luta de uma mãe contra operadora de saúde
Na casa da aposentada Dione Michels em Ilhéus, na Bahia, as lembranças do único filho…
Na casa da aposentada Dione Michels em Ilhéus, na Bahia, as lembranças do único filho dela estão em quase todos os lugares. Ela guarda itens como fotos de diferentes fases da vida dele, trabalhos de escola, roupas e sapatos de quando ele era bebê.
O nascimento do filho foi muito desejado por ela e pelo marido. Dione só conseguiu engravidar 14 anos depois do casamento. “Depois que nasceu, ele se tornou a nossa vida”, diz à BBC News Brasil.
O maior amor de Dione é hoje a saudade que a emociona diariamente. Em janeiro, Joaquim Aires morreu aos 29 anos em decorrência da Covid-19.
Ela relata que tem sido difícil seguir sem o filho e já pensou em tirar a própria vida, mas diz que há um motivo que a mantém em pé: a busca por justiça contra a operadora de saúde Prevent Senior.
Joaquim era piloto da Air Jet, empresa de táxi aéreo que pertence ao grupo que controla a Prevent.
A principal suspeita dos familiares é de que ele tenha sido infectado pelo coronavírus por um colega de trabalho. Os pais e a viúva de Joaquim movem uma ação trabalhista contra a Air Jet. A empresa argumenta que não há como comprovar que o funcionário foi infectado enquanto trabalhava.
O filho sequer teve a chance de sobreviver à doença, diz Dione. Isso porque a aposentada afirma que ele foi alvo de negligência da Prevent Senior. Ela diz que o rapaz demorou para receber atendimento adequado, teve o pulmão perfurado durante a internação e foi medicado com remédios sem qualquer respaldo científico contra a Covid-19, como um medicamento usado contra o câncer.
O caso de Joaquim é um dos inúmeros relatos contra a Prevent Senior. Nos últimos meses, a operadora de saúde se tornou alvo de diversas acusações pela conduta durante a pandemia. O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) criou uma força-tarefa para investigar a empresa.
A BBC News Brasil encaminhou todos os apontamentos feitos pela mãe de Joaquim para a Prevent Senior. Em resposta, a operadora de saúde afirma que Joaquim recebeu “atendimento médico adequado”. Mas a empresa não comenta detalhes sobre o caso, limita-se a afirmar que os esclarecimentos “serão prestados ao Ministério Público e ao Judiciário, onde tramita uma ação movida pela família”.
‘Me seguraram porque me desesperei muito’
O momento mais difícil da vida de Dione, de 63 anos, ocorreu na noite de 28 de janeiro. Na data, ela estava junto com o marido no apartamento de uma amiga, no 11º andar de um prédio em São Paulo (SP), quando a nora informou que Joaquim havia morrido por insuficiência respiratória, em decorrência da Covid-19.
“Eu gritei muito”, diz. Sem rumo, pensou em se jogar do prédio por considerar que a vida dela também havia acabado naquele momento. “Meu marido e minha amiga me seguraram porque eu me desesperei muito”, relembra.
Ela conta que o pensamento sobre tirar a própria vida mudou dias depois, quando decidiu que iria lutar para ter respostas sobre a morte de Joaquim. “Eu falei pro meu marido que a gente precisaria cuidar um do outro, porque a gente precisaria lutar por justiça”, afirma Dione.
A aposentada conta que desde os últimos dias do filho já desconfiava que havia algo errado no atendimento dado pela Prevent Senior.
Ela diz que o piloto não recebeu acompanhamento adequado no momento certo. Para ela, Joaquim poderia estar vivo se fosse internado logo que começou a apresentar sintomas mais preocupantes da doença.
Os primeiros sintomas
A tristeza na vida da família teve início após 10 de janeiro, quando Joaquim fez o seu último voo. No dia seguinte, ele não trabalhou mais, porque o piloto que o acompanhava havia testado positivo para a Covid-19.
“No dia 11, o meu filho fez o teste e deu negativo. Mas ele amanheceu com muita febre no dia 13, procurou uma unidade da Prevent Senior e fez um novo teste de Covid-19”, diz Dione.
Ainda sem o resultado do teste, Joaquim recebeu um “kit covid” na Prevent Senior, conta a mãe dele. “Ele me mandou uma mensagem com a foto desse kit e me disse que deram no hospital. Eu perguntei se não faria mal e ele falou: ‘mãe, o médico mandou tomar, então deve ajudar em alguma coisa'”, diz Dione.
Esse kit é um pacote com remédios distribuídos pela operadora de saúde a pacientes com sintomas da doença.
Nele havia medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina, que não possuem qualquer eficácia comprovada contra a Covid-19.
No mês passado, a Prevent Senior assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) se comprometendo a vetar a distribuição desse “kit covid” ou o uso de remédio sem respaldo científico contra a Covid-19.
Em nota, a Prevent Senior afirma que a assinatura do termo com o Ministério Público é “um ato que demonstra a transparência e boa fé da empresa”.
A operadora ainda afirma que é “a primeira interessada em colaborar com as autoridades responsáveis pelas investigações técnicas”.
Os dias no hospital
Desde que Joaquim teve os primeiros sintomas, o estado de saúde dele piorou cada vez mais. O resultado do segundo exame saiu dias depois e confirmou que ele estava com a Covid-19.
Em 18 de janeiro, Joaquim, que morava em São Paulo, contou para a mãe que estava mal e buscou atendimento médico em uma unidade da Prevent Senior. Nesse dia, segundo Dione, o piloto estava com febre, pressão baixa e com nível de saturação de oxigênio no sangue em 85% —abaixo de 93% já acende um sinal de alerta.
Um exame feito na data, conta Dione, apontou que a doença já havia atingido cerca de 25% dos pulmões do rapaz. “Chegaram a colocar o meu filho no respirador, porque ele estava muito mal”, diz a aposentada.
Mas após ser atendido, Joaquim foi orientado a voltar para casa. “Ele já deveria ter sido internado nesse dia, mas disseram para ele continuar tomando o “kit covid” e ficar em repouso absoluto”, conta Dione.
Nos dias seguintes, a situação dele piorou cada vez mais. Dione conta que encontrou mensagens de Joaquim para uma médica da Prevent Senior nas quais ele dizia estar preocupado com o agravamento dos sintomas. A aposentada, que diz ter acessado essas mensagens quando pegou o celular do filho após a morte dele, relata que a profissional de saúde o aconselhou a permanecer em casa tomando os remédios do “kit covid”.
“No dia 20 de janeiro, ele estava muito assustado e me falou: mãe, queria muito melhorar logo”, relembra a aposentada. Por morar distante do filho, ela acompanhava o drama dele por meio de mensagens e ligações.
Em 21 de janeiro, ele estava com febre, falta de apetite, diarreia e muita falta de ar. Dione conta que Joaquim falou que o nível de saturação de oxigênio dele estava em 68%, segundo um oxímetro que ele havia comprado para usar em casa. “O meu filho até pensou que esse aparelho estivesse com defeito”, comenta. Na data, o piloto foi levado por uma ambulância.
“Uma enfermeira que voava com ele disse que entrou em pânico quando foi buscá-lo na ambulância, porque ele estava muito mal. Mas ela ficava tentando acalmar o meu filho, dizendo que tudo iria ficar bem”, diz Dione.
De acordo com Dione, os médicos passaram horas procurando um leito de UTI em uma unidade da Prevent Senior. Eles encontraram uma vaga no Hospital Sancta Maggiore, que pertence à operadora de saúde, na região de Pinheiros, em São Paulo.
“Na madrugada, eu recebi mensagem de que ele tinha sido internado em estado grave”, relembra a aposentada, que ficou desesperada.
Segundo ela, o filho foi intubado durante a madrugada de 23 de janeiro. “Foi nesse momento que perfuraram o pulmão dele. Falaram que ele puxou o tubo quando foram intubar e por isso perfurou o pulmão”, comenta.
“Mas ele não deveria estar sedado quando foi intubado? Como uma pessoa sedada arranca o tubo? Não existe isso”, declara a aposentada.
O pulmão perfurado agravou ainda mais a situação de Joaquim, diz Dione.
“No terceiro dia de intubação, uma médica falou que o pulmão perfurado causou muita hemorragia e por isso era como se ele tivesse sido intubado naquele momento, porque até então estavam cuidando dessa intercorrência”, conta a aposentada.
Enquanto Joaquim estava na UTI, a família recebeu um pedido de autorização para que ele fosse medicado com metotrexato, usado em tratamento de câncer e doenças autoimunes, como psoríase grave. O medicamento não tem qualquer comprovação científica contra a Covid-19.
“A médica me disse que estavam usando contra a Covid-19 e estava dando resultados em alguns pacientes, então me aconselhou a autorizar. Naquela situação, eu autorizei, porque confiei na médica”, afirma.
A BBC News Brasil questionou a Prevent Senior sobre o caso de Joaquim. Porém, como citado no início da reportagem, a empresa limita-se a dizer que o piloto recebeu “atendimento médico adequado” e que “todos os esclarecimentos serão prestados ao Ministério Público e ao Judiciário”.
Vítima da Covid-19
As últimas imagens que Dione tem do filho são do rapaz internado na UTI, logo após ela e o marido, que também se chama Joaquim, viajarem para São Paulo às pressas.
“Eu fiquei de um lado da maca e o meu marido ficou do outro. Ficamos conversando com ele. A gente sabia que o nosso filho estava sedado, mas mesmo assim conversamos. Depois ficamos no pé da maca, fizemos uma oração e fomos embora”, conta.
Dione ficou abalada com o estado de saúde do filho. Ela acreditava que ele pudesse se recuperar, pois argumenta que ele era jovem e saudável. Já a Prevent Senior aponta, na certidão de óbito do rapaz, que ele era obeso e indica que isso colaborou para a morte dele. A aposentada contesta a informação da operadora. “O meu filho estava acima do peso, mas não era obeso. Ele tinha feito check-up antes de entrar na empresa, pois são muito rigorosos”, declara.
Denúncias contra a Prevent Senior
Revoltada com aquilo que classifica como descaso com a vida e sequência de erros, Dione afirma que não sabia como cobrar a Prevent Senior pelo atendimento que o filho recebeu na unidade de saúde.
A aposentada só descobriu como exigir respostas quando diversos relatos sobre supostas irregularidades em tratamentos dados pela operadora passaram a ser divulgados. Foi nesse período que ela descobriu que as suspeitas sobre a empresa não se restringiam ao caso do seu filho.
Nos últimos meses, a Prevent Senior se tornou alvo de diversas denúncias pela conduta durante a pandemia de Covid-19.
A princípio, a empresa virou alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado Federal, após diversas suspeitas de irregularidades apontadas por médicos que trabalharam na operadora de saúde.
No fim de setembro, a advogada Bruna Morato, que representa 12 médicos que atuaram na Prevent Senior, declarou à CPI no Senado que a operadora ameaçou demitir os profissionais de saúde que discordassem do uso dos medicamentos sem comprovação científica contra a Covid-19.
Ela afirmou que a operadora de saúde fazia os pacientes acreditarem que havia um bom tratamento contra a Covid-19, mas não explicava que essas pessoas “estavam sendo usados como cobaias”.
A Prevent Senior também é acusada de não citar a Covid-19 em alguns registros de óbitos de pacientes que haviam sido internados em razão da doença.
A operadora de saúde nega que tenha cometido irregularidades e afirma que tem total interesse que essas acusações sejam investigadas pelas autoridades.
Quando soube que o Ministério Público de São Paulo estava investigando a Prevent Senior, Dione encaminhou um texto sobre o caso do seu filho ao órgão. No fim de outubro, ela foi convocada e prestou depoimento à força-tarefa que investiga a operadora de saúde.
O maior desejo dela é que o caso seja investigado a fundo e que os envolvidos sejam responsabilizados.
Além do MP-SP, a Prevent Senior também se tornou alvo de investigações da Polícia Civil de São Paulo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) —que regula o setor de planos de saúde— e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
A Câmara de São Paulo também iniciou, em outubro, uma CPI para investigar a atuação da Prevent Senior na capital paulista.
O PROCESSO CONTRA A AIR JET
A busca de Dione por justiça se estende à Air Jet. Na ação trabalhista contra a empresa de táxi aéreo, do mesmo grupo da operadora de saúde, ela, o marido e a viúva de Joaquim pedem pensão mensal vitalícia e pagamento das verbas rescisórias, que segundo eles não foram pagas até o momento.
A família também pede indenização por dano moral em ricochete, que ocorre quando alguém é afetado indiretamente por uma situação na qual outra pessoa é vítima direta. No caso do piloto, a defesa alega que ele foi infectado no trabalho e a consequência disso, que terminou em morte, impactou os pais e a companheira dele.
O Sindicato Nacional dos Aeronautas tem apoiado a família do piloto na ação trabalhista contra a empresa de táxi aéreo. O processo ainda está em fase inicial.
A defesa do piloto aponta que os pais e a companheira de Joaquim dependiam financeiramente dele. Os familiares de Joaquim dizem que não foram procurados pela Air Jet após a morte dele e afirmam que não receberam nenhum tipo de apoio da empresa.
O piloto ingressou na Air Jet em outubro de 2020. Uma das principais atividades dele era o transporte de pacientes com a Covid-19 em todo o Brasil.
A defesa de Joaquim alega que não há dúvidas de que ele contraiu a Covid-19 no serviço, porque o rapaz passou a apresentar sintomas dias após o piloto que o acompanhava em voos ser diagnosticado com a doença—esse companheiro de trabalho dele conseguiu se recuperar.
Uma das provas apresentadas pela defesa de Joaquim é uma conversa no WhatsApp, em 11 de janeiro, na qual o colega de trabalho dele alertou que testou positivo para a Covid-19. Na data, Joaquim disse que não tinha nenhum sintoma, mas dois dias depois contou que havia acordado com febre.
Em nota, a Air Jet afirma que os esclarecimentos sobre o caso serão prestados à Justiça. A empresa contesta a afirmação de que Joaquim tenha contraído a doença no trabalho, pois diz que é impossível determinar isso durante uma pandemia.
A empresa argumenta que Joaquim “foi devidamente treinado em prevenção da Covid e recebeu todos os equipamentos de proteção necessários”. E diz que é “importante esclarecer” que ele foi afastado do trabalho logo que apresentou os “primeiros sinais de sintomas da doença”.
Ainda em nota, a empresa afirma que amparou a família de Joaquim e deu “todo o suporte para o recebimento de seguro de vida vinculado a seu contrato de trabalho”.
“Os direitos trabalhistas ainda não foram pagos porque a família, ao ajuizar ação, os incluiu nos pedidos à Justiça do Trabalho, mas serão pagos normalmente tão logo determinados pelo juízo”, diz o comunicado dos representantes da Air Jet.