JUSTIÇA

Mulher esterilizada contra sua vontade receberá R$ 100 mil, em São Paulo

Juiz afirma que esterilização eugênica é vedada pela Constituição e que paciente foi submetida a um 'torturante processo'

Mulher esterilizada contra sua vontade receberá R$ 100 mil, em São Paulo (Foto: Judiciário de São Paulo)

A 11ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que o estado de São Paulo pague R$ 100 mil por danos morais a uma mulher que foi submetida, por ordem judicial, a uma laqueadura. Nos autos, ela afirma que não queria passar pelo procedimento.

A cirurgia foi realizada em fevereiro de 2018, no interior paulista, após o Tribunal de Justiça acatar um pedido do Ministério Público de São Paulo pela esterilização compulsória.

O órgão afirmou que a mulher não aderiu a tratamentos para a dependência química e, por ser pobre, não tinha condições de sustentar uma família. À época, ela tinha sete filhos, nenhum deles sob a sua custódia.

A ação foi ajuizada em 2017 e logo recebeu decisão favorável, mas a sentença não foi cumprida de imediato porque a mulher estava em sua oitava gestação. A Justiça, então, determinou que a laqueadura fosse realizada logo após o parto —e assim foi feito.

A então paciente hoje é representada pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, mas não tinha defensor designado ou advogado quando passou pela cirurgia.

A sentença chegou a ser reformada posteriormente, mas a esterilização já estava concretizada. A mulher tinha 36 anos quando passou pela laqueadura.

Em decisão publicada nesta quarta-feira (6), o juiz Renato Augusto Pereira Maia afirma que a esterilização compulsória eugênica é vedada pela Constituição e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, destacando que a autora da ação foi submetida a um “torturante processo”.

“Ignorar a autonomia individual neste particular, mediante práticas forçadas, significaria dar à pessoa humana um tratamento de coisificação”, afirma.

“Em suma, a esterilização compulsória enseja inadmissível preconceito social contra as pessoas pobres, uma vez que existem alternativas jurídicas disponíveis de assistência social e de orientação de planejamento familiar“, continua.

De acordo com o magistrado, o processo que levou à laqueadura foi permeado por vícios e deveria ter sido extinto já no momento do pedido de esterilização compulsória, uma vez que não há respaldo legal.

“O simples ajuizamento da demanda é elemento apto à violação de direitos humanos“, afirma o juiz Renato Augusto Pereira Maia. “Reduzir um ser, dotado de autonomia e autodeterminação, a método de castração compulsório é desprezar anos de lutas por igualdade de gênero“, segue.

Uma das falhas procedimentais apontadas pelo juiz são as 48 horas dadas pelo Judiciário para que a laqueadura fosse realizada em caráter de urgência. Segundo o magistrado, o prazo viola a previsão de 60 dias entre a coleta do consentimento da paciente e a realização do ato cirúrgico para que haja ciência da intervenção, que é irreversível.

Embora o cumprimento da decisão tenha sido postergado em função da gravidez da mulher, Maia afirma que os agentes estatais também atuaram em descompasso com uma portaria do Ministério da Saúde que estabelece que a esterilização durante o parto seja feita apenas sob comprovada necessidade.

“Neste caso, a indicação deverá ser testemunhada em relatório escrito e assinado por dois médicos, o que não foi indicado nos autos”, afirma o juiz.

“Observa-se, do exposto, uma sucessão de falhas e violações dos agentes públicos, os quais desprezavam inúmeros direitos e garantias, bem como, em uma perspectiva kafkiana, uma mulher que, submetida a um processo ilegal, era constantemente coagida a ser submetida à laqueadura em descompasso com sua vontade”, diz ainda.

Servidores públicos ouvidos como testemunhas no processo afirmam que a laqueadura foi consentida pela mulher à época de sua realização. O magistrado, porém, diz que não houve gravação do atendimento, de forma que não há comprovação de que ela tenha sido efetivamente ouvida e respeitada.

O juiz afirma também que, pelo fato de o procedimento não ter sido negado por órgãos de saúde e de assistência social, não haveria motivos para que o Ministério Público ingressasse com uma ação.

“O contexto dos autos originários despreza anos de luta feminina e enseja violação de direitos humanos, na medida em que coage a autora a se submeter a procedimento de laqueadura compulsória”, diz o magistrado.

Em sua contestação, a Fazenda Pública do estado de São Paulo afirmou que a mulher sempre expressou seu desejo pela laqueadura de forma “clara, firme, inequívoca e reiterada” durante o acompanhamento prestado pela rede pública, o que só não era concretizado porque ela engravidava de tempos em tempos.

Disse, ainda, que eventual irregularidade no prontuário médico ou na forma de cumprimento da ordem judicial seria de responsabilidade da instituição que realizou a laqueadura. A Fazenda ainda pode recorrer da decisão que ordenou a indenização de R$ 100 mil.