Mulher ganha auxílio-acidente por agressão do ex na volta do trabalho
Em agosto de 2016, cinco tiros foram desferidos à mulher, mas apenas um a acertou
Quatro anos após ser vítima de uma tentativa de feminicídio por um ex-namorado quando voltava do trabalho, a catarinense Cirlene de Ramos conseguiu garantir na Justiça o direito a receber o benefício de auxílio-acidente do INSS em decorrência da agressão.
Hoje, aos 38 anos e casada, ela ainda convive com as sequelas do ataque. O ex, após atacá-la, se matou.
Cirlene, que mora em Joinville (SC) prefere não mostrar o rosto, mas não se importa em se identificar e contar tudo o que passou.
A operadora de produção diz que, em poucas semanas de relacionamento, a impressão positiva que tinha do então namorado no começo da relação mudou radicalmente. “Ele começou parecendo ser a pessoa certa, mas, no decorrer dos meses, foi se transformando em algo que, aos meus olhos, não seria bom pra mim.”
Cirlene terminou o namoro após sete meses, mas passou a receber ligações frequentes e ameaças de morte do homem, na época com 39 anos.
Cinco tiros
Numa sexta-feira de agosto de 2016, na volta do trabalho, por volta de 0h45, ela desceu do ônibus da empresa e foi abordada pelo rapaz, na rua onde mora, em Joinville, a 178 km de Florianópolis.
“Junto comigo estava um colega de trabalho que gritou pra corrermos. Mas ele [o agressor] me segurou e colocou a arma em minha cabeça. Apertou o gatilho duas vezes, mas a bala não saiu. Foi aí que empurrei ele e saí correndo”, conta Cirlene.
O agressor disparou cinco tiros. Dois falharam, dois quase a acertaram e um a atingiu. “Ele saiu correndo atrás de mim e me acertou no pescoço. Logo em seguida, se matou. Eu desmaiei na hora, acordei depois de cinco minutos com muita dor e perdendo muito sangue.”
Levada para o hospital, se recuperou, mas precisou ficar afastada do trabalho. Perdeu movimentos dos braços e passou a depender de ajuda para as tarefas mais rotineiras, como tomar banho, beber água e comer.
Cirlene ficou dois anos e quatro meses afastada até conseguir trabalhar de novo. Com restrições de movimento, foi enquadrada como pessoa com deficiência. “Tudo gerava dor, mas com o passar dos meses foi melhorando um pouco”, diz.
Operadora de produção em uma empresa fabricante de torneiras, ouviu do supervisor que, para ter aumento de salário, teria de trabalhar com maquinário. ‘Lógico que para mim era impossível”, diz. Sem se entregar, ela se matriculou em um curso técnico de administração e atualmente está no segundo ano.
Conquista do benefício
As dificuldades com tantas restrições, no entanto, ainda a incomodavam e prejudicavam sua vida financeira. Pesquisando sobre benefícios, descobriu a possibilidade de receber um auxílio-acidente e procurou um advogado para pedir o benefício.
Há um mês, a Justiça de Santa Catarina reconheceu que a agressão na volta do expediente se enquadra como acidente de trabalho, em decisão do juiz Márcio Schiefler Fontes, da 4ª Vara da Fazenda Pública de Joinville.
O magistrado condenou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a pagar à vítima o benefício do auxílio-acidente, incluindo parcelas passadas. “A verdadeira tentativa de feminicídio que sofreu a autora não desnatura a natureza do acidente de trabalho”, afirmou Schiefler em um trecho da sentença.
Em seu entendimento, o direito está presente “na modalidade equiparada, pois as lesões definitivas que acometem a autora foram ocasionadas durante o retorno da jornada de trabalho para sua residência”.
O deslocamento do trabalho para casa pesou na decisão judicial, segundo o advogado de defesa de Cirlene. Everton Luis de Aguiar explica que ela recebeu auxílio-doença até dezembro de 2018, quando o benefício foi encerrado.
O INSS então a considerou apta a retornar a uma atividade compatível com o quadro clínico, mas sem o direito à ajuda sobre acidente de trabalho. “Como ficou com sequelas e essas sequelas reduzem sua capacidade de trabalho, ela tem restrições. Então, tem direito ao auxílio-acidente como complemento de renda, mas é comum o INSS não conceder [esse benefício]”, diz Aguiar.
O advogado explica que o benefício é previsto em lei para acidentes de qualquer natureza, desde 1995, e que não há um mínimo de incapacidade exigida para ter direito a ele. A operadora de produção receberá o benefício, inclusive com décimo terceiro, até se aposentar. Os valores ainda não foram calculados.
Sequelas e aprendizados
Atualmente casada, Cirlene tem dois filhos e ainda convive com as sequelas da tentativa de feminicídio, entre elas, um edema na medula, alteração na sensibilidade, perda de força e dor crônica.
Ela diz que aceitou dar seu relato a Universa com o intuito de conscientizar outras vítimas sobre a existência do auxílio-acidente, pouco conhecido dos trabalhadores, e alertar mulheres sobre relacionamentos com homens agressivos.
“Meu conselho para as mulheres é que procurem avaliar muito bem antes de deixar uma pessoa entrar em suas vidas. E, se [o agressor] já está, colocar um ponto final. Ninguém é obrigado a viver uma vida de violência.”