Violência sexual

Mulher relata estupro ocorrido após carnaval: ‘Uma parte de mim morreu e outra está lutando para nascer de novo’

'Vivi para contar': Vítima de 31 anos é levada a casa na Lapa e estuprada por dois homens depois de festa: 'Era um abatedouro'

“Tenho 31 anos, não nasci no Rio mas morei, me graduei e trabalhei na cidade por muitos anos. Nesse período eu fiz uma rede de amigos muito sólida e, para revê-los depois de dois anos de pandemia, trancada em casa, viajei para lá no carnaval, no fim de fevereiro. Na sexta-feira da mesma semana aconteceu uma festa no Centro da cidade, e era meu último fim de semana no Rio. Então, depois do trabalho eu me arrumei, encontrei meus amigos e fomos.

Estava tudo muito divertido e a festa rolando no máximo respeito. Teve um momento em que meu grupo se dividiu e ficamos eu, um amigo e um amigo desse amigo. Foi quando chegaram esses dois caras. Dois jovens. Um mais novo, com uns 27 anos, e o outro mais velho, no mínimo 32 anos. Sotaque carioca, cabelo curto, meio raspado.

Um queria ficar comigo e o outro estava dando em cima dos meninos. Eu acabei ficando com esse cara. Eles começaram a andar com a gente na festa e entraram na rodada de bebida que a gente estava fazendo (cada hora alguém pagava a rodada). Antes disso eu me lembro bem da festa, a partir daí eu só me lembro de recortes.

É possível que eles tenham colocado algo na minha bebida. Não posso confirmar porque no hospital não fizeram exame toxicológico em mim.

O meu amigo me relatou no dia seguinte que os homens ficavam falando o tempo todo na festa: “Nós alugamos uma casa aqui no Centro, vamos pra lá fazer um ‘after’. E sempre que o meu amigo dizia ‘vamos’, eles desconversavam. Foi quando ele saiu para ir ao banheiro, junto de seu amigo. Ao voltarem, os dois caras e eu já não estávamos.

Ele disse que rodaram a festa inteira e não me acharam. Ele me ligou e me escreveu, e eu não sei se fui eu que respondeu. Só disse na mensagem que estava tudo bem. Mas não estava.

A partir daí me lembro de parar em frente a um portão na região do Centro com uma escada muito alta. Lembro de subir as escadas e de chegar a um quarto muito pequeno (um quadradinho) com um colchão, um fogão e uma porta que devia dar para o banheiro. Aquilo era um abatedouro. Lembro de perguntar muitas vezes pelo meu amigo. Lembro de perguntar ao rapaz com que eu estava ficando o que o outro homem estava fazendo ali. Lembro de dizer muitas vezes que eu não queria transar com os dois, de perguntar sobre a camisinha e de falar que queria ir embora. E os dois em cima de mim, já me violentando.

Quando um deles saiu de cima de mim e saiu do quarto, consegui me levantar, me vestir e, por sorte, quando esse que saiu estava voltando, deixou a porta e o portão abertos e eu consegui ir embora. Saí correndo! Quando olhei pra trás, os dois ainda chamaram pelo meu nome.

Já na rua, eu consegui identificar como chegar na Lapa e de lá eu saberia chegar na casa onde eu estava hospedada. No caminho comecei a raciocinar sobre o que tinha acontecido. Quando cheguei em casa, chamei uma amiga e fomos pra Delegacia da Mulher. Foi horrível. Eram apenas homens atendendo, dois policiais, que pareciam estar mais preocupados com a hora de almoço do que em acolher ou responder as mulheres que estavam ali.

Depois de uma longa espera, chegou a minha vez de ser atendida. O policial puxou meu histórico no sistema e ironizou: “Ih, você já foi muito assaltada aqui no Rio, porque você ainda volta pra cá? Vejo aqui, roubaram celular, carteira, várias vezes“. Eu não estava ali pra isso.

Comecei a relatar o que tinha acontecido, as partes que eu lembrava, mas no meio do caminho foi me dando muito medo. Nas falas dele eu fui lembrando o quanto o sistema é machista. Quando eu disse que não queria mais fazer o B.O., ele perguntou: “Ih está com medo?”. Aquilo me atravessou, me arrepiou, me deu nojo. Perguntei se eu poderia fazer o B.O. depois e ele disse, pela primeira vez: “Claro, é a delegacia da mulher, aqui é a mulher que manda”. Depois de tudo que aconteceu ali, aquilo pra mim soou como deboche. Com muita raiva, levantei da cadeira. O policial levantou também, olhou para o outro que estava lá e disse “esse foi rápido”, como quem diz “vou até almoçar mais cedo”.

Na delegacia me encaminharam para um hospital também no Centro do Rio. Depois de mais de cinco horas de espera, eles disseram que eles não realizam o procedimento pós estupro e que eu deveria ser encaminhada para outro hospital. Como a Delegacia da Mulher não sabe dizer qual hospital eu deveria ir?

No segundo hospital, tive o atendimento. Eu estava exausta. O tratamento foi outro: as médicas me deram apoio emocional, me deram o coquetel de medicamentos (contra doenças sexualmente transmissíveis e anticoncepção de emergência), fizeram o teste rápido de HIV e de sífilis. Saí de lá umas 19h, direto pra casa.

Desde então tento me reerguer. E tem sido muito difícil. Minhas amigas estão me dando muito suporte. Estou seguindo com uma psicóloga, uma ginecologista e uma nutricionista, porque o coquetel de remédios me deixou fraca.

Não estou mais no Rio mas pretendo voltar. Não vou deixar que isso me afaste dos meus amigos ou que meu medo seja maior que eles. Me sinto de luto por mim mesma. Uma parte de mim morreu e outra está lutando para nascer de novo. Todos os dias dói. Me sinto fraca e desacreditada. Ainda não tive forças para voltar à delegacia para fazer o B.O. Mas tenho que ser forte e minha força me fez escrever esse relato. Eu precisava alertar outras mulheres.

A gente sabe os perigos que corre apenas por ser mulher no mundo. Mas não acha que vai passar por isso. A pandemia nos fez acreditar que estaríamos melhores depois de 2 anos em casa. Engano nosso. É preciso tomar cuidado, e muito, ao sair de casa.

Esteja rodeada de quem você ama e confia. E, se você for uma vítima de estupro, peça ajuda: tudo o que você precisa nesse momento é colo, carinho e calma. Já da culpa, dessa você não precisa, porque ela nunca será sua.”

Atendimento na delegacia

Questionada sobre o atendimento prestado na delegacia, a Polícia Civil respondeu, em nota:

“A Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL) informa que o relato não condiz com a metodologia de atendimento que é orientada às delegacias e que preza pelo serviço de excelência. O Departamento-Geral de Polícia de Atendimento à Mulher (DGPAM) vai apurar o ocorrido.

A Polícia Civil acrescenta que as Delegacias de Atendimento à Mulher (Deams) de todo o estado realizaram mais de 30 mil atendimentos, instauraram cerca de 25 mil inquéritos e prenderam aproximadamente 600 pessoas, em 2021”.