Mulheres, religião, democracia e corrupção protagonizaram eleição de 2022
Cada eleição apronta das suas. A de 1989, quando um Brasil recém-liberto da ditadura voltou…
Cada eleição apronta das suas. A de 1989, quando um Brasil recém-liberto da ditadura voltou a escolher seu presidente, elegeu Fernando Collor numa campanha marcada pela renovação a qualquer custo.
Depois veio o Plano Real, em 1994. Os pleitos seguintes tiveram cada um seu mote protagonista, da crise econômica ao emprego. Em 2018, Jair Bolsonaro (PL) venceu como ícone da antipolítica.
Os temas de 2022 “foram de certa maneira colocados” pelo atual presidente, diz o analista político Thomas Traumann, ex-ministro do PT. “O que costura mulheres, religião, democracia e corrupção é ele. Seja quando chamou uma jornalista de ‘vergonha’, investiu mais que qualquer outro no voto evangélico e quando fala há dois anos de fraude nas urnas e conspiração do Tribunal Superior Eleitoral contra ele.”
Democracia
Lula busca imprimir tom plebiscitário ao pleito: um “ou vai ou racha” para a jovem república brasileira, já sobrevivente a duas ditaduras, a getulista e a militar. Daí vender a ideia de uma frente ampla para derrotar Bolsonaro, apontado como um perigo à democracia capaz de fazer rivais ignorarem divisões e se unirem.
Símbolo maior foi a escolha de Geraldo Alckmin (PSB) para compor a chapa petista como vice. O ex-tucano descreveu assim o governo Lula em 2006: “Parado na economia e acelerado nos escândalos”.
“Maior teste de estresse da Nova República”, nas palavras do cientista político Antonio Lavareda, o temor de uma ruptura democrática aproximou Lula de aliados improváveis, de Joaquim Barbosa, algoz do PT no mensalão, a Miguel Reale Jr., autor do impeachment de Dilma Rousseff (PT). Motivou também campanhas como a carta pela democracia lida na Faculdade de Direito da USP, gestos mais voltados às classes média e alta, já que temas econômicos impactam mais a base da pirâmide, grosso do eleitorado lulista.
Já o presidente evoca supostas ameaças à liberdade de expressão para sustentar que é ele o paladino da democracia, além de defender a narrativa sem provas de que as urnas eletrônicas utilizadas no país podem ser fraudadas, alvará para uma possível investida golpista caso perca a reeleição.
Mulheres
Em paródia de “Mulheres”, clássico na voz de Martinho da Vila, canta o humorista Marcelo Adnet: “Já xinguei mulheres de todas as coisas, de barbaridades, muitos desaforos”. A bordoada com alvo óbvio, Bolsonaro, serve de trilha para um dos pontos mais sensíveis da disputa: mulheres, 52% do eleitorado.
A reincidência em falas misóginas voltou-se diversas vezes contra o atual chefe do Executivo. O ápice aconteceu no primeiro debate presidencial, durante o qual ele não gostou da pergunta da jornalista Vera Magalhães e a chamou de “vergonha”, insulto que repetiu para a candidata Simone Tebet (MDB).
No 7 de Setembro, puxou para si o coro de “imbrochável” e aconselhou homens a procurar “princesas”, como a que afirma ter encontrado em Michelle Bolsonaro. Sugeriu uma comparação entre a primeira-dama e a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, com quem Lula se casou. Um dia depois, a esposa do petista disse que não via princesas, só “mulher de luta” em ato do PT. Ambas viraram recursos eleitorais.
Revides partiram também de Tebet (“por que tanta raiva das mulheres?”) e Soraya Thronicke (União Brasil), com sua sugestiva tirada a Bolsonaro no segundo debate: “Não cutuque a onça com sua vara curta”.
Com menor abalo sísmico, Lula também tropeçou. Não quis se comprometer com paridade de gênero na formação de um eventual ministério e se embananou em fala sobre violência doméstica: “Quer bater em mulher? Vá bater em outro lugar!”. Bolsonaristas exploraram o escorregão.
Beatriz Della Costa, fundadora do Instituto Update, centrado em inovação política, lembra que, no 2010 que consagrou Dilma como a primeira presidente mulher, o debate de gênero era quase nulo. Ainda há chão, diz ela, resgatando a foto da reunião que formalizou a chapa Lula-Alckmin: 15 homens e 2 mulheres.
A base evangélica, mais afável a investidas políticas do que a média, é xodó eleitoral do atual presidente. Cercado de aliados como o pastor Silas Malafaia, batendo ponto em quantas Marchas para Jesus puder, o católico Bolsonaro ergueu a imagem de guardião da moral e dos bons costumes.
Ressoa com força a narrativa da batalha espiritual, que pressupõe uma guerra entre o bem e o mal, muito presente na oratória do presidente. Exemplo está na pastora Valdirene Moreira, que disse numa live ter visto a mão de Deus passar sobre as urnas para repelir falcatruas —repeteco da alegação falsa de que o sistema eleitoral é vulnerável a fraudes. “Satanás vai tentar, mas a mão do Senhor vai revelar.”
Lula virou alvo de uma fake news que já o fragilizou em 1989, a de que vai fechar igrejas caso eleito. Em 2010, o deputado Marco Feliciano fez um mea culpa: “Como um papagaio, eu repetia: o PT vai fechar as igrejas do Brasil. […] Mas Lula foi eleito, e nenhuma igreja foi fechada”. Ele voltou a propagar a falsa teoria.
O petista joga na defensiva aqui. No debate da Globo, em resposta a uma provocação do Padre Kelmon (PTB), disse ser “cristão, casado na igreja, batizado, crismado e frequentador de igreja”.
Corrupção
O teto de vidro não impede que Bolsonaro tente colar no adversário a pecha de corrupto. Sua campanha pôs no ar o bordão “Lula ladrão, seu lugar é na prisão”, e o mandatário se refere ao antecessor como “ex-presidiário”. Bolsonaro enfrenta suspeitas próprias de malfeitos, seja na família (rachadinhas, compra de imóveis com dinheiro vivo), seja no governo (emendas de relator, escândalo no MEC).
Lula, por sua vez, é cobrado também por Ciro Gomes (PDT) e Tebet, por acusações que o levaram a passar 580 dias preso. O Supremo Tribunal Federal anulou as condenações contra ele. Os rivais dizem que a decisão não prova sua inocência, apenas falhas na construção do caso pelo juiz Sergio Moro.
Economia
Quase nada se ouviu, fora dos círculos especializados, sobre vespeiros eleitorais de pleitos anteriores, como privatizar ou não, se um governo deve ser mais liberal ou desenvolvimentista. A agenda econômica que mais se sobressaiu dialogou com o dia a dia do eleitor, alérgico a inflação e desemprego.
O tema se impôs na promessa que Lula faz de forrar a barriga do brasileiro com picanha e cerveja —em ato evangélico, omitiu o álcool e deixou só “o churrasquinho”. Bolsonaro cita a Guerra da Ucrânia e a pandemia para justificar recentes malogros na economia. Outra blindagem para sua gestão é dizer que o “fique em casa”, a quarentena para impedir mais mortes por Covid-19, tem grande parcela de culpa.