Não é questão de racismo, são fatos, diz comandante da Marinha após críticas a João Cândido
Marcos Sampaio Olsen afirma que Força se manifesta pelo mérito, não com ação discriminatória
(Folhapress) O comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, disse nesta segunda-feira (29) que se baseou em fatos para criticar o projeto de lei que inscreve João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, de 1910, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Olsen também declarou que a manifestação não se trata de racismo ou discriminação contra João Cândido.
“O que se colocou na discussão é que a posição da Marinha era de racismo, discriminadora. Absolutamente, não é isso. A Marinha é uma instituição que se posiciona pelo mérito”, disse Olsen a jornalistas no Rio de Janeiro.
Na semana passada, em carta, Olsen chamou os envolvidos na Revolta da Chibata de “abjetos marinheiros”. O comandante tratou o episódio de 1910 como “deplorável página da história” e disse que enaltecer os insurgentes significa exaltar atributos que não contribuem para o “plano estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado democrático de Direito”.
O projeto de lei em questão tramita atualmente na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado Aliel Machado (PV-PR) com relatoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ).
“Me posicionei baseado em fatos. Não tenho nenhuma conotação ideológico-partidária. Aquela carta que enderecei ao presidente da Comissão de Cultura procura fazer uma síntese, um apanhado, dos fatos que ocorreram em 1910 por ocasião da revolta dos marinheiros”, afirmou Olsen nesta segunda.
Ele disse ainda: “Temos um herói negro, marinheiro, e casualmente [também] nascido no Rio Grande do Sul. É o marinheiro Marcílio Dias. Participou da guerra, teve seu braço amputado na defesa da bandeira brasileira. Foi morto em combate. Esse, sim. Não creio que se deva emprestar outros atributos, a não ser aqueles requisitos absolutamente necessários, para um herói”.
Marcílio Dias atuou na Guerra do Paraguai e morreu após batalha em 1865.
Olsen falou com jornalistas após um evento na sede do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), no Rio de Janeiro.
Ao ser questionado sobre a repercussão de sua manifestação, o comandante da Marinha disse que o “contraditório deve ser recebido como enriquecedor no âmbito do debate”.
A Revolta da Chibata entrou para os registros históricos como um movimento de marinheiros contra castigos físicos na Marinha. Olsen reconheceu a existência à época dessa prática e disse que a situação é “absolutamente condenável”.
O comandante, porém, declarou que “uma coisa é o açoite” e que “outra coisa é virar herói”, em uma crítica a João Cândido. “A maneira encontrada para reivindicar suas demandas, no meu entendimento, foi equivocada”, disse.
“Claro que o açoite é absolutamente condenável, mas não se pode tomar as armas, especificamente, quatro navios no interior da baía de Guanabara, matar o comandante, urinar no corpo do corpo do comandante depois da morte, matar oficiais, matar marinheiros. Aqueles supostamente envolvidos no movimento que resolveram não aderir ao movimento foram mortos”, acrescentou.
Na última semana, o único filho vivo de João Candido, Adalberto Cândido, rebateu as críticas do chefe da Marinha.
Candinho, como é conhecido, disse que Olsen “teria que agradecer aos marinheiros de 1910 pela Marinha de hoje”.
“Naquela época não tinha disciplina, hierarquia, não tinha nada. Os marinheiros eram os filhos rebeldes que os pais colocavam na Marinha. Os oficiais eram filhos de fazendeiros. Não tinha disciplina na Marinha, ela só foi modernizada depois disso. Mas a Marinha se acha demais, se acha mais do que o Exército e a Aeronáutica. A última escravidão do Brasil foi na Marinha.”
A declaração de Olsen gerou críticas também no meio político.
O deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ) disse que a fala “trouxe constrangimentos ao governo” e “foi inaceitável”.
“Parece um distanciamento com a lógica da democracia, dessa mesma Marinha que, há pouco tempo, um outro comandante tinha aceitado participar de uma tentativa de golpe.”
Ele e Benedita da Silva visitaram Candinho, em solidariedade, na última semana.
Especialistas ouvidos pela Folha afirmaram que a posição do chefe da Marinha ignora a desigualdade racial ainda persistente no país.
Para Álvaro Pereira do Nascimento, professor titular de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor de uma biografia sobre João Cândido, a ideia “de um herói ou heroína é controversa”, mas não haver negros nesses livros “é reservá-los somente a homens brancos”.
Ele afirma que a revolta de 1910 teve um caráter propositivo e foi além da mera reação aos castigos físicos. Propunha, por exemplo, a retirada de oficiais violentos, a revogação do código disciplinar que permitia o castigo corporal e medidas de educação para os marinheiros de comportamento reprovável.
Para Francisco Phelipe Cunha Paz, historiador e doutorando em história pela Unicamp, o reconhecimento de João Cândido entre os heróis nacionais é esforço necessário para contar a história de uma parte do Brasil “violada e violentada” desde o início da colonização.
“João no panteão da Pátria é ao mesmo tempo uma lembrança-denúncia do racismo como base de sustentação da história desse país. É também uma forma de combate e reparação”, afirma.