Covid-19

Nas favelas, moradores passam fome e começam a sair às ruas por ajuda

Além de comida, faltam itens como papel higiênico, fraldas, sabão e detergente, para lavar mãos e louça

Enquanto governo e Congresso ainda devem os detalhes de como farão chegar aos trabalhadores informais a nova ajuda emergencial de R$ 600 durante a crise causada pela Covid-19, a falta de dinheiro e alimentos já atinge em cheio as famílias que vivem na informalidade.

Armários vazios e barracos repletos de adultos e crianças que deixaram de ir às escolas onde recebiam a merenda –sua principal refeição do dia– são a nova realidade em favelas de São Paulo.

Além de comida, faltam itens como papel higiênico, fraldas, sabão e detergente, para lavar mãos e louça. Em muitas casas, a porta de entrada é o único meio de ventilação. Na rua, crianças limpam pés e mãos em fios de água que correm nas guias.

No desespero, muitos moradores já saem de casa para ir atrás de parentes, amigos e entidades assistenciais em busca de alimentos e ajuda.

Perto dessas comunidades, há ambulantes nos semáforos e, dentro delas, bem mais gente em vielas e ruas do que se pode ver em vários bairros de São Paulo. Muitos estão atrás de bicos e de comida.

Em alguns pontos, a sensação é de que não há um isolamento estabelecido pela epidemia. Fora de suas casas minúsculas e mal preparadas, crianças jogam bola e há pessoas ao ar livre em volta de mesas de bilhar ou de um baralho.

Na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, onde ao menos três favelas (Nazzali, Flamengo e Sucupira) reúnem cerca de 16 mil famílias, muitos moradores dizem ser impossível manter-se em casa sem alimentos.

Na Nazzali, a Folha encontrou pessoas que foram dispensadas do trabalho na semana passada e que perderam, de uma hora para a outra, boa parte da renda que traziam para casa, muitas vezes em regime semanal ou diário.

O ajudante de pedreiro Edmar Sobral, 32, conta que desde a semana passada deixou de ser chamado para obras e que parou de receber os cerca de R$ 600 que levantava a cada duas semanas.

Na quinta (26), ele disse ter conseguido só alguns poucos reais, com conhecidos e por meio de um bico, para comprar pão. “Não sei mais o que fazer”, diz. Com a mulher grávida, a despensa de seu barraco de um cômodo ao lado de um córrego –onde ele e os vizinhos despejam esgoto– já não tem quase nada.

A alguns metros dali, Natasha Silva, 28, mãe de três filhos e auxiliar de limpeza, diz ter sido dispensada por 15 dias pelo patrão. Seu rendimento neste mês deve cair à metade dos R$ 1.000 que ganha.

O fato de os filhos de 6, 8, e 12 anos não estarem indo às aulas aumentou muito o gasto com a alimentação e o gás, pois eles deixaram de almoçar e tomar lanche na escola. “Antes, só fazia algo à noite para eles em casa”, diz.

Na região, há filas enormes diante de depósitos de gás. Além de boatos de que o produto pode faltar, a demanda cresceu com a presença das crianças e de outras pessoas o tempo todo em casa.

Aran Ramos, da Resgatando Vidas, entidade que recebe recursos da ONG Gerando Falcões para ajudar famílias carentes na Cachoeirinha, diz que a situação pode se tornar dramática nos próximos dias caso não haja ajuda imediata.

“As pessoas foram informadas pela televisão de que deveriam ficar em casa, mas em momento algum o poder público veio até aqui com algum tipo de ajuda para sustentar essa medida”, diz Ramos. “Muitos já estão saindo em busca de trabalho, alimentos ou dinheiro.”

Na favela Nazzali, há mulheres que recebem o Bolsa Família, como Marcia Custodia, 28, mãe de três crianças. Mas os R$ 210 mensais que ela ganha com o benefício não serão mais suficientes para sustentar também o marido, agora sem os bicos, e as crianças, sem a merenda escolar.

Pesquisa recém divulgada do Data Favela mostrou que 72% das pessoas nessas comunidades não têm poupança para manter nem por uma semana o seu baixo padrão de vida.

Outras projeções estimam que quase 10% da população brasileira viva hoje em “aglomerados subnormais”, que aumentaram após a recessão iniciada em 2014. O último Censo do IBGE contabilizou 6.329 favelas, em 323 municípios.

Metade dessas moradias fica no Sudeste –23% em São Paulo e 19% no Rio de Janeiro. Belém era a capital com a maior proporção de favelados: 54,5%. Salvador (33%), São Luís (23%) Recife (23%) e o Rio (22%) vinham a seguir.

É nas favelas que vive a maioria dos 13,5 milhões de brasileiros na extrema pobreza. Eles passam o mês com menos de R$ 145, obtidos em trabalhos muito precários.

No geral, o Brasil tem 38,3 milhões de informais, que recebiam R$ 1.400 mensais, em média, antes do isolamento. É a eles que o governo promete os R$ 600 por três meses.

Ainda longe do destino, a proposta é que o valor seja pago via bancos públicos por meio de uma “conta-poupança digital”, que seria aberta em nome dos beneficiários.

Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, de agosto do ano passado, 45 milhões de brasileiros não haviam movimentado nenhuma conta bancária há mais de seis meses ou sequer tinham vínculos com o sistema financeiro. De acordo com a sondagem, esse grupo gira anualmente mais de R$ 800 bilhões em consumo e negócios.

Para especialistas, a forma mais rápida e controlada de fazer a distribuição da nova ajuda seria abrir já a fila para novos cadastrados no Bolsa Família, programa estabelecido há anos, comprovadamente eficiente e com uma rede de atendimento nacional vinculada à Caixa Econômica Federal.

Pagando um benefício médio de R$ 190, o Bolsa Família já atinge 13,2 milhões de mulheres, está sendo ampliado para mais 1,1 milhão e poderia, mesmo que temporariamente, cadastrar os novos necessitados com um valor maior.

Para atender a essa nova fila, a Caixa já dispõe de um cadastro único com 27 milhões de famílias carentes no Brasil, a maior parte atendida pelo Bolsa Família. É por meio desse cadastro que o governo pretende identificar aqueles que receberão os R$ 600.

De onde quer que venha, o pagamento da nova ajuda representará um impulso para o comércio e a economia. Estudos indicam que para cada R$ 1 a mais por pessoa gasto em programas como o Bolsa Família, o PIB per capita do município aumenta R$ 4.

Assim, além de garantir a sobrevivência dos indivíduos, esse tipo de despesa pública deve contribuir para sustentar a atividade nessa fase de retração abrupta da economia.