Número de novas armas nas mãos de cidadãos comuns cresce 601% em dez anos
Dados da Polícia Federal, obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação, mostram que, em 2009, 8.692 novas armas foram registradas — o número saltou para 60.973 no ano passado. Em 2020, até abril, já foram 33.776
Medidas que flexibilizaram o acesso às armas de fogo, aceleradas no governo de Jair Bolsonaro, levaram a um aumento de 601%, em dez anos, na quantidade de novos armamentos em poder de cidadãos comuns.
O crescimento dos novos registros ocorreu em 26 unidades da Federação, com queda apenas no Amazonas. O levantamento considerou três categorias elencadas pela PF: cidadãos, servidores (há profissões do setor público que dão direito à requisição) e caçadores de subsistência, moradores de áreas rurais que têm a atividade de caça como meio de sustento.
É justamente este ofício que faz com que o Acre tenha, proporcionalmente em relação ao número de habitantes, o maior volume de armas com registro ativo na mão de pessoas físicas. Em seguida, vêm Santa Catarina e Rio Grande do Sul, estado com maior número absoluto de armamentos: 78.929.
Existem hoje 1,1 milhão de armas registradas no sistema da PF, das quais 550 mil são de cidadãos. Há ainda 341 mil com órgãos públicos, como a própria PF e polícias civis — o restante é de responsabilidade de empresas de segurança privada, entre outros. O armamento das Forças Armadas e das polícias militares é cadastrado em outro sistema, sob gestão do Exército. Já com relação ao porte, o direito de andar armado na rua, o aumento de novos registros no país foi de 227% em dez anos: foram 2.945 concessões para defesa pessoal em 2019, frente a 898 em 2009.
A facilitação do acesso foi uma das bandeiras de campanha de Bolsonaro, que, já na Presidência, editou decretos sobre o assunto e promoveu uma mudança que ajudou a impulsionar a compra. A legislação prevê o direito à posse, quando o cidadão pode ter a arma em casa ou no trabalho, nos casos em que há a comprovação da “efetiva necessidade”. Antes do atual governo, cabia aos agentes da PF fazerem esta análise.
A partir de meados do ano passado, a autodeclaração do solicitante passou a ser encarada como suficiente para atestar a necessidade — há ainda a obrigação de apresentar certidões negativas de antecedentes criminais, passar por um exame de aptidão psicológica, entre outros pontos. Em relação a 2018, o aumento de novos registros em 2019 foi de 64%.
A mudança acelera os registros, mas não é só isso. Tem outros ingredientes (que vieram com os decretos), como o aumento da quantidade e de tipos de armas que cada pessoa pode ter e o aumento de acesso à munição. Também não podemos esquecer o discurso pró-armas, de político fazendo arminha com a mão. Cria quase um fetiche — afirmou a advogada Isabel Figueiredo, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em junho, O GLOBO mostrou que o número de munições vendidas entre janeiro e maio quase dobrou em relação ao mesmo período do ano passado, reflexo de uma medida do governo que aumentou o limite de compra de cartuchos.
Especialistas no tema refutam tese de que mais armas representam mais segurança, já que, na maioria das vezes, os alvos de crimes são pegos de surpresa e não têm tempo de reagir. No entanto, é a busca pela sensação de maior segurança que impulsiona a procura. A médica Gabriela Lebsa, moradora de Porto Alegre, conquistou a posse em 2019.
“Se eu sentir minha casa ou minha família ameaçada, vou saber como nos defender. Espero não usar, mas, se precisar, vou saber”, disse ela, que frequenta um clube de tiro.
Em Formosa (GO), o dono de um posto de gasolina, que prefere não se identificar, requisitou a posse em abril e, no mês seguinte, já estava com a pistola em mãos:
— Fui assaltado quatro vezes na mesma semana. O poder público não chega aqui. Eu não tenho condições de contratar segurança privada.
Pesquisas de opinião mostram que a maioria da população é contra a expansão do acesso. No ano passado, o Datafolha mostrou que 66% dos brasileiros consideravam que a posse de armas deveria ser proibida. Em maio, o mesmo instituto indicou a rejeição de 72% da população à frase em que Bolsonaro afirmou querer “todo mundo armado”.
— Ele não é só o presidente dos adoradores de armas. Quando fala abertamente sobre armar a população, ele dá o tom. Não é só aquela discussão de legítima defesa, que é uma falácia. É muito preocupante, não só o impacto para segurança pública, mas para a democracia — reforçou a diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso.