EDUCAÇÃO

Órgão do MEC orientou prefeitura de Uruaçu a forjar pedido de verba já liberada, mostra email

O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do Ministério da Educação controlado pelo centrão,…

FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão do Ministério da Educação controlado pelo centrão, pediu por email que a prefeitura de Uruaçu (Goiás) enviasse um ofício de solicitação de verba para uma obra já liberada e que o documento fosse preenchido com data retroativa à autorização.

A mensagem foi enviada em fevereiro deste ano, sendo que a verba fora autorizada em dezembro de 2021. O dinheiro estava empenhado, ou seja, reservado no Orçamento para determinada ação, a primeira fase da execução orçamentária.

Mensagens obtidas pela Folha explicitam a ausência de critérios técnicos na gestão de recursos da educação federal no governo Jair Bolsonaro (PL), com pedidos de liberações a aliados sendo feitas pelas próprias lideranças do órgão.

Ligado ao ministério, o FNDE está no centro de denúncias de corrupção, inclusive com participação de pastores. Ao ser entregue por Bolsonaro ao centrão, o órgão foi transformado em um balcão de negócios. Houve uma explosão de empenhos para atender aliados e até burla no sistema interno para liberar novas obras.

Conforme mostrou a Folha, relatório preliminar da CGU (Controladoria-Geral da União) concluiu que o escanteamento de critérios tem potencializado “acordos escusos” no FNDE.

A mensagem que exemplifica mais uma violação desse trâmite é de 23 de fevereiro. Nela a Diretoria de Gestão, Articulação e Projetos Especiais do FNDE afirma à Prefeitura de Uruaçu (GO) não ter encontrado ofício relacionado a empenho de R$ 49 mil para uma obra em escola. Este empenho havia sido oficializado em 17 de dezembro de 2021.

No texto, a diretoria do fundo fala que o documento deve ter data retroativa. A mensagem ainda seguiu com um modelo de ofício em anexo.

“Caso o ofício não tenha sido encaminhado, segue modelo de ofício (em anexo), que deve ter data anterior ao empenho e ser personalizado com os dados do município e da iniciativa”, diz a mensagem, indicando que o município forjasse a data do registro da demanda pela obra.

Mensagem do FNDE pede que prefeitura goiana encaminhe ofício com data retroativa – Reprodução

Os documentos indicam que o FNDE aprovou obras sem que tivesse ao menos a oficialização da demanda (feita por meio de ofício) e ainda tentou driblar os registros e o STF (Supremo Tribunal Federal) ao pedir que a prefeitura mentisse a data no documento.

Os recursos em questão foram direcionados pelas emendas de relator, que compõem o chamado orçamento secreto —valores bilionários controlados por aliados de Bolsonaro no Congresso, com pouca transparência sobre a destinação e o uso.

A prefeitura e a secretária de Educação de Uruaçu foram procuradas, mas não responderam à reportagem. O FNDE também ignorou os pedidos de esclarecimentos.

No modelo de ofício enviado no anexo, há até um texto de argumentação sobre o pedido que, na prática, já estava liberado: “A iniciativa é de grande importância para este Município, que irá atender diversas necessidades do desenvolvimento educacional de interesse local”, descreve.

A busca pelos ofícios por parte do FNDE ocorreu após o STF intervir nas emendas de relator. Os recursos liberados por meio desses instrumentos são controlados pelos líderes do centrão —o presidente do FNDE, Marcelo Lopes da Ponte, era chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), um dos líderes do grupo e atual ministro da Casa Civil de Bolsonaro.

Em novembro passado, a ministra Rosa Weber chegou a suspender pagamentos com esses recursos e exigiu divulgação das indicações de gastos, inclusive com a publicação dos documentos que embasaram a distribuição —como os ofícios das prefeituras, por exemplo.

O empenho para Uruaçu é relacionado a emendas de relator, como atestado no Portal da Transparência. O prefeito da cidade é Valmir Pedro Tereza, filiado ao PSDB.

Na mensagem enviada para a prefeitura, o órgão também cita o tema. “Como o empenho foi realizado com Emenda de Relator (RP-9), somos obrigados a registrar a solicitação, por parte da prefeitura.”

Descontrole técnico

Relatório preliminar da CGU aponta que pedidos via email foram essenciais para que o FNDE descumprisse resolução que obriga o órgão a observar um ranking de vulnerabilidade dos municípios para definir a distribuição das verbas.

Trocas de mensagens reunidas pela controladoria mostram lideranças do órgão solicitando a áreas técnicas a liberação de empenhos, demonstrando a ingerência política com os recursos da educação.

Duas mensagens da diretoria do FNDE, de agosto de 2021, são acompanhadas, inclusive, de planilhas com municípios que devem ser beneficiados. Em email de 11 setembro de 2020, a própria presidência do FNDE pede análise para liberação de recursos de compra de mobiliário escolar para cidade de Morungaba (SP).

A prefeitura foi procurada, mas também não respondeu.

À CGU o órgão do MEC admitiu que não olha para critérios técnicos, mas “segue ordem determinada pela alta administração do FNDE, que encaminha emails com a relação dos entes federativos que devem ter suas propostas analisadas”.

A controladoria afirma que “as evidências obtidas a partir de emails institucionais trocados entre servidores do FNDE” mostram que “a necessária aderência a critérios técnicos na prioridade de liberação dos recursos” foi ignorada.

Uma das consequências desse descontrole técnico se expressa na liberação de recursos, que privilegiou cidades mais ricas. Os técnicos da CGU elaboraram o ranking que deveria ser seguido pelo FNDE e identificaram essas distorções.

Ao dividir as cidades por nível de vulnerabilidade, a controladoria identificou, por exemplo, que o FNDE direcionou empenhos em 2021 no total de R$ 170,7 milhões para 538 municípios com condições mais precárias. Isso atendeu a 32% das cidades mais vulneráveis e 26% de alunos com esse perfil.

Por outro lado, o dobro em empenhos (R$ 348,7 milhões) foi direcionado para 809 cidades na outra ponta do ranking —que reúne as menos vulneráveis, ou seja, mais ricas. Esse montante atendeu 57% dos municípios desse perfil, e 44% dos alunos desse grupo.

A CGU afirma que a falta de critério no repasse das verbas ocorreu porque o financiamento das ações “foi realizado de forma discricionária, a partir de indicações advindas da alta gestão do FNDE, por meio de mensagens eletrônicas à área técnica”.