As reclamações de falta de dasatinibe em várias regiões ganharam força principalmente nos últimos dois meses, afirma a Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia).
“Os pacientes dizem que entram em contato com seu centro de tratamento e a resposta é que ainda não se sabe quando o medicamento chegará”, descreve a entidade, em nota. Segundo a Abrale, também foram reportados casos de escassez de nilotinibe e imatinibe, utilizados igualmente para o tratamento da leucemia.
Diante da situação, a associação diz ter entrado em contato com o Ministério da Saúde e com o Ministério Público Federal, mas não obteve respostas. Sendo assim, uma ação judicial coletiva já foi aberta pela organização.
Uma paciente moradora de Campo Grande (MS), que pediu para não ser identificada, contou à reportagem que sofre com a falta do dasatinibe desde o começo de setembro.
Antes do problema, todo mês ela ia à farmácia de quimioterapia do HRMS (Hospital Regional de Mato Grosso do Sul) para pegar gratuitamente uma caixa com 30 comprimidos na versão de 100 mg. No mês de setembro, porém, ela recebeu a notícia de que o medicamento estava em falta.
“A cada dois dias eu ia [à farmácia] e eles respondiam ‘olha, não tem’. Até que um dia disseram ‘não vai ter previsão mesmo, porque a medicação acabou e é preciso ver com seu médico qual será a alternativa’”, afirma.
Procurada, a diretoria técnica do HRMS, por meio da Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul, informou que o problema atinge todo o Brasil e é “ocasionado em decorrência da pandemia”.
Diante do desabastecimento, a paciente procurou então o médico, que indicou a substituição pelo nilotinibe.
Trocar a medicação dessa forma, contudo, pode não ser uma boa alternativa, porque os medicamentos não são idênticos. A substituição pode assim resultar em uma perda na resposta ao tratamento de quimioterapia oral, alerta o hematologista Angelo Maiolino.
“Não é que o nilotinibe não seja eficaz, mas, se o paciente está utilizando um outro medicamento, então o melhor é que ele continue usando-o”, afirma.
Uma falha no tratamento, ele alerta, pode resultar, por exemplo, na passagem da fase crônica da leucemia para a aguda, que é muito mais grave, incurável e pode levar à morte em pouco tempo.
Já utilizando o novo medicamento, a paciente de Campo Grande diz que o nilotinibe causou alguns efeitos colaterais, como distensão abdominal. Outro ponto que ela ressalta é que o fármaco demanda maior atenção para manter o tratamento de modo adequado —enquanto no dasatinibe é necessário tomar um comprimido por dia, o nilotinibe é ingerido em quatro doses diárias, duas pela manhã e duas à noite.
“Você precisa ficar duas horas em jejum [antes de ingerir o nilotinibe] e só pode voltar a se alimentar uma hora depois de tomar o medicamento”, lamenta.
Flavio Comeli, empresário do setor de transporte que mora em Campinas (SP), é outro paciente que foi diagnosticado com leucemia mieloide crônica. Desde 2016, ele utiliza o dasatinibe e, segundo conta, estava tendo uma ótima resposta.
No entanto, há aproximadamente dois meses, por causa da escassez de distribuição, ele começou a tomar diariamente apenas 60 mg, dos 80 mg inicialmente recomendados por seu médico. No último mês, adotou um racionamento até maior: agora toma um comprimido de 100 mg a cada dois dias.
Embora Comeli tenha feito um exame que indicou a eficiência da terapia mesmo com a dosagem menor, o empresário vê com preocupação a falta de dasatinibe.
“É um medicamento de alto custo e, assim como eu, tem muitas outras pessoas que fazem esse tratamento”, diz ele, que também ressalta o medo de que essa transição brusca possa causar, no futuro, uma falha no controle do quadro.
Procurado, o hemocentro da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), local em que Comeli retira o remédio, informou que desde junho não recebe o dasatinibe, mas, com o estoque, conseguiu ainda suprir a demanda dos pacientes nos meses de julho e agosto.
No estado de São Paulo, a situação da falta do remédio é registrada já há alguns meses. A secretaria estadual de Saúde informa que, no segundo semestre do ano, solicitou ao Ministério da Saúde “58 mil unidades e recebeu apenas 23,7%”.
No terceiro semestre, a gestão estadual afirma que “nenhuma entrega [do dasatinibe] ocorreu até o momento para atender mais de 660 pacientes”. Diante desse cenário, a secretaria conta ter proposto ao ministério a substituição pelo nilotinibe, “que também não foi entregue para essa finalidade”.
Também contatada, a Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro afirma que o dasatinibe 20 mg está em falta desde 9 de setembro, enquanto a versão de 100 mg foi suficiente para atender a demanda do mês corrente.
O Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), que reúne informações das secretarias de saúde de todas as unidades federativas do Brasil, informou que já recebeu alguns relatos relacionados à falta do medicamento. A entidade, contudo, afirma não ter ainda dados concretos quanto à dimensão do problema no país.
Para Maiolino, é importante que a distribuição seja normalizada o quanto antes, para não trazer mais problemas aos pacientes em todo o país.
“Como a compra e a distribuição é direta pelo Ministério da Saúde, esse pode ser um problema que afetará todo o país se não for sanado o mais rápido possível”, conclui.
Entenda por que o desatinibe é utilizado contra leucemia
O que é o dasatinibe?
O remédio é um inibidor de tirosinoquinase (ITQ), proteína advinda de uma alteração genética em uma célula-tronco e que causa a leucemia mieloide crônica. Além do dasatinibe, existem outros inibidores utilizados no controle da proteína, como o imatinibe e o nilotinibe.
O que é a leucemia mieloide crônica?
É uma doença manifestada quando a tirosinoquinase causa uma produção exagerada de glóbulos brancos que circulam no sangue.
Que problemas a leucemia mieloide crônica traz para o paciente?
Alguns sintomas são fadiga, hemorragias esporádicas e aumento do baço e do fígado. Na fase mais avançada da doença, a pessoa pode morrer.
Como funciona o dasatinibe?
Assim como outros ITQs, o dasatinibe inibe a tirosinoquinase, regulando assim a produção dos glóbulos brancos. Isso faz com que o doente permaneça na fase crônica, onde não há sintomas muito graves, sem evoluir para cenários críticos.
O que acontece se o tratamento for paralisado?
A leucemia pode evoluir da fase crônica para o estágio agudo. Na última fase, há sintomas como anemia, infecções, sangramentos e, em último caso, o óbito.
É recomendada a troca de inibidores?
A troca do medicamento pode diminuir a eficácia do tratamento, resultando em cenários mais graves. A alteração entre inibidores só é recomendada quando o paciente está reagindo mal ao tratamento.