CASO SOPHIA

Pai de menina estuprada e morta em MS pediu 7 vezes ajuda à rede de proteção à criança

O padrasto e a mãe da criança, Christian Campoçano e Stephanie de Jesus, estão presos sob acusações de homicídio e estupro de vulnerável –a última atribuída apenas ao homem

Doze meses. Por doze meses, Jean Carlos Ocampo avisou aos órgãos da rede de proteção à criança e ao adolescente de Mato Grosso do Sul que sua filha vinha sendo agredida na casa da mãe.

Foram três idas ao Conselho Tutelar, duas à Polícia Civil, uma à Defensoria Pública e uma ao Juizado Especial. Nenhuma medida foi tomada, e Sophia de Jesus Ocampo continuou sob a guarda da mãe.

Em uma quinta-feira de janeiro deste ano, Jean recebeu a notícia de que sua filha, de 2 anos e 7 meses, estava morta em um posto de saúde de Campo Grande, com o pescoço quebrado e o hímen rompido.

O padrasto e a mãe da criança, Christian Campoçano Leitheim, 25, e Stephanie de Jesus da Silva, 24, estão presos sob acusações de homicídio e estupro de vulnerável –a última atribuída apenas ao homem.

Segundo a defesa de Christian, não há provas das agressões. Os médicos legistas não detectaram sêmen dele no corpo de Sophia. “A palavra dele, embora diminuída neste momento –situação comum em casos como estes– é de que não praticou quaisquer atos libidinosos com a criança, negando veementemente a sua autoria em relação ao suposto crime de estupro a ele imputado”, diz nota enviada à imprensa.

Stephanie afirma ser inocente. Em entrevista à Folha, em fevereiro, ela disse também ser vítima de agressões de Christian e que por isso tinha medo de denunciá-lo. “Eu não gostava [das agressões na Sophia] e dizia que não batia no filho dele. Ele vinha pra cima de mim e me batia, era violento. Esse foi um dos motivos pelos quais eu não o denunciei”, disse. A entrevista foi feita em uma penitenciária no interior de Mato Grosso do Sul.

O alerta de que havia algo errado com Sophia soou no final de 2021, quando o pai viu hematomas no rosto, braços e pernas da filha ao buscá-la na casa de Stephanie –os dois se separaram em maio daquele ano, após quatro de relacionamento formal.

Ele fotografou os ferimentos e questionou a mãe da menina. Segundo ela, Sophia havia caído do carrinho.

Semanas depois, a avó materna da criança, Delziene, informou a Jean que a casa onde a menina vivia estava insalubre e Stephanie, agressiva –a conversa foi gravada por ele. “A minha preocupação é com a Sophia, ela vive doente”, disse a avó. Em seguida, Jean cita os hematomas na filha, e Delziene relembra uma discussão que teve com Stephanie: “você cala a sua boca, se não vou te denunciar para o Conselho Tutelar. Você quer perder a Sophia?” teria dito a avó.

Desta vez, Jean foi ao Conselho Tutelar. Era 31 de janeiro de 2022. Mostrou as fotos dos machucados de Sophia e a gravação do diálogo com a avó da menina. Na ocasião, os conselheiros não registraram a denúncia e o aconselharam a procurar a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, a três quilômetros dali.

Primeiro erro: segundo os especialistas ouvidos pela Folha, o conselho deveria ter registrado a denúncia. “Não faz sentido ter um Conselho Tutelar só para indicar onde o denunciante tem que ir. Se fosse assim, a pessoa iria direto à polícia”, diz Maria Isabela Saldanha, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes da OAB/MS.

O Conselho Tutelar é ligado à administração municipal, apesar de ser um órgão autônomo. Em Campo Grande, há cinco deles, quatro a menos do que deveria —a legislação define que toda cidade deve ter um Conselho Tutelar a cada 100 mil habitantes. Os conselheiros são eleitos pelos moradores da cidade após uma série de provas técnicas.

Jean seguiu a orientação do conselho, foi à delegacia e registrou o boletim de ocorrência. Lá, mostrou as fotos da filha machucada e o áudio da ex-sogra. Stephanie depôs dias depois, assim como sua mãe: a primeira negou as acusações, e a segunda disse que Jean havia interpretado mal o que ela dissera.

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O delegado responsável pelo atendimento tipificou o crime como maus-tratos, delito considerado de menor potencial ofensivo e que, até então, ficava a cargo do Juizado Especial –após a morte de Sophia, o Tribunal de Justiça de MS instituiu uma vara criminal para receber esses casos.

“Se fosse identificada a intenção de machucar a criança de uma forma contínua, a tipificação deveria ser tortura, mas quando é fato isolado pode ser maus-tratos”, explica Barbara Heliodoram, diretora jurídica da associação Henry Borel, criada para promover diretos de crianças e adolescentes.

A ocorrência foi encaminhada à Justiça, que agendou a audiência do caso para nove meses depois da denúncia. Em 20 de outubro, Jean foi à audiência sem advogado. A situação é normal, segundo os especialistas, já que cabe à Defensoria Pública auxiliar o acusado e não o autor da ação.

“Isso é praxe porque o povo é pobre, mas alguém com dinheiro iria à audiência com advogado”, diz a advogada Maria Isabela Saldanha. Jean é técnico de enfermagem e mora em um bairro simples e distante do centro de Campo Grande.

Na audiência, a juíza perguntou três vezes ao pai se Sophia aparecera mais vezes com hematomas; Jean respondeu que não. O promotor responsável pelo caso sugeriu o arquivamento da ação. A audiência durou seis minutos.

“Minha filha nunca mais apareceu naquele estado do dia que eu fotografei, mas vinha com alguns hematomas, roxos e mordidas”, disse Jean à Folha quatro meses após a audiência.

Ele só ficou sabendo que a ação havia sido arquivada depois da morte de Sophia.

O delegado responsável pela primeira ocorrência, ainda em janeiro de 2022, também recomendou que Jean voltasse ao Conselho Tutelar. Ou seja, o pai de Sophia foi orientado pelo Conselho Tutelar a procurar a polícia e pela polícia a procurar o conselho. “Quando não há um padrão com os desenhos bem limitados, com as atuações de cada órgão na rede de proteção, gera-se um ping-pong”, afirma Cândida Magalhães, advogada atuante no enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Jean seguiu mais uma vez as orientações dos órgãos públicos. No início de fevereiro do ano passado, voltou ao Conselho Tutelar com o áudio e as fotos. Desta vez, foi atendido. Os conselheiros, porém, não notificaram o Ministério Público sobre o caso e decidiram ir à casa de Stephanie.

Lá, não encontraram hematomas na criança. Anotaram apenas que a casa estava “um pouco desorganizada”.

“O pai levou indícios bem sérios, como fotos dos hematomas, então a comunicação com o Ministério Público deveria ser feita imediatamente”, diz a advogada Cândida Magalhães. “Até porque ninguém vai falar que bate no filho para um conselheiro tutelar”, acrescenta Saldanha.

Três meses depois, em maio, Jean voltou ao Conselho Tutelar. Dessa vez, exibiu uma reportagem da afiliada da TV Record sobre um cachorro que havia morrido em uma casa imunda, com fezes em toda a área externa. O cão era de Stephanie e Christian, e a casa era onde Sophia morava. “Eu achei que isso seria a cerejinha para tirar minha filha da mãe porque ali estavam nítidas as condições de como ela vivia”, diz Jean.

Mas não foi.

Os conselheiros não encontram Stephanie em casa. Deixaram uma notificação na porta, pedindo que ela fosse ao Conselho Tutelar. Stephanie foi com a criança, que segundo o conselho, “não tinha marcas e sempre teve uma aparência bem cuidada”. Ainda assim, os conselheiros avisaram a Secretaria de Assistência Social sobre o caso.

A pasta, porém, não encontrou a mãe na residência e devolveu o caso para o Conselho Tutelar. Os dois órgãos não voltaram a discutir o assunto.

No mesmo mês, Jean procurou a Defensoria Pública, reivindicando a guarda da filha. Segundo ele, os defensores exigiram uma lista de documentos e testemunhas que pudessem comprovar os maus-tratos. Os documentos estavam prontos, mas ninguém quis depor contra Stephanie.

Hoje, a Defensoria Pública diz que as testemunhas, apesar de importantes, não eram essenciais. “Pedimos os documentos ao Jean e tentamos cobrá-lo por telefone, mas não tivemos retorno. Se a pessoa não tiver nenhuma testemunha, mas tiver alguma outra prova, normalmente a gente entra com a ação”, diz a defensora pública Débora Paulino.

Nenhuma ação foi protocolada.

Em novembro, Sophia foi levada doente ao posto de saúde. Horas antes, Christian enviou mensagem a Stephanie, dizendo que havia dado “uma surra” na criança, “já que ela não come”. O padrasto também avisou que a menina estava “com um galo na testa e a boca sangrando”. Os policiais encontraram o diálogo após perícia nos telefones dos acusados.

Nenhum dos profissionais de saúde que atenderam a menina no dia questionou a mãe sobre os machucados. Aquele era o sétimo dia que Sophia era atendida no posto desde seu nascimento –foram 14 até a sua morte. Era atendimento demais para uma criança de dois anos e sete meses, mas nenhuma luz vermelha acendeu.

Dois dias depois, Sophia quebrou a perna. “Como náuseas e dores abdominais evoluem para isso?”, questiona Jean à Folha. Ao receber a notícia, ele voltou à delegacia e registrou o segundo boletim de ocorrência. Como no primeiro, o delegado responsável tipificou o crime como maus-tratos.

“A Sophia estava com a perna quebrada, então não há que se falar de maus-tratos, já é lesão corporal ou até tortura”, diz Maria Isabela Saldanha.

Desta vez, o caso não chegou nem a ser analisado pelo Ministério Público. Como maus-tratos, o processo foi enviado no final de dezembro para o Juizado Especial, que não funciona sob escala de plantão. A ação seria analisada a partir de 20 de janeiro de 2023, quando acabasse o recesso do Judiciário.

Mas não foi. Sophia morreu em 26 de janeiro.