Pais questionam youtubers que estimulam consumo de comida ‘trash’
Tendência de influenciadores explorarem excesso de alimentos não saudáveis em seus vídeos tem levantando a preocupação tanto de especialistas quanto de familiares
Um homem despeja quilos de chocolate em uma banheira, entra nela, passa a guloseima pelo corpo, come o máximo que consegue e grava tudo em vídeo. A “farra” já foi vista mais de 14 milhões de vezes e pertence a um dos canais de maior audiência do YouTube Brasil, o de Luccas Neto, irmão do também popular youtuber Felippe Neto. O vídeo é exemplo de uma onda entre os produtores de conteúdo para crianças e adolescentes na plataforma: o abuso de comidas, em especial de doces.
Nos canais dos irmãos Neto e de outros ídolos infantis, como Pedro Rezende e Enaldinho, é comum encontrar “o maior hambúrguer do mundo”, bolos gigantescos, misturas exóticas de fast-food com produtos açucarados, combinação de vários refrigerantes em uma mesma jarra e R$ 300 gastos apenas em “doces americanos”.
Essa tendência de influenciadores explorarem um excesso de comidas não saudáveis em seus vídeos tem levantando a preocupação tanto de especialistas quanto de pais. O engenheiro Adriano Magalhães, por exemplo, notou mudanças no comportamento alimentar do filho Bernardo, de 10 anos, no período em que ele mais assistiu a conteúdos do gênero. O menino chegou a engordar quatro quilos e ficou, segundo o pai, “monotemático”: só falava de comida, pedia em restaurantes porções maiores do que conseguia comer e solicitava sempre a compra das mesmas marcas.
— Comidas que, antes, duravam 15 dias em casa, ele passou a devorar em dois. Claro que a relação causal não é tão direta assim, não dá para culpar só os vídeos, mas, quando notei que havia algo errado e fui conferir o que ele via, percebi que o Bernardo simplesmente repetia muito do que os youtubers diziam e faziam — conta o pai. — Hoje, ele está há um mês sem assistir a esses canais e sua rotina alimentar melhorou.
O assunto foi tema do texto de uma mãe que viralizou no Facebook no último mês, com mais de 6 mil “curtidas”. A professora de marketing Elis Monteiro escreveu críticas a Luccas Neto após ir com o filho de 9 anos a um show do youtuber, no qual ele reproduzia boa parte do conteúdo de seu canal.
— Vendo o show, eu liguei os pontos. Vi que as alterações que eu percebia no meu filho vinham dali: a vontade de colocar ketchup em tudo e o fato de ele ter ficado obcecado com alguns produtos — lembra Elis.
São dois os principais motivos que fazem acender o sinal amarelo: o atual cenário de obesidade crescente entre crianças e a sutil fronteira entre o que é, na internet, publicidade infantil e conteúdo espontâneo.
Os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que, em 2016, 9,4% das meninas e 12,7% dos meninos de 5 a 19 anos no país eram obesos. O problema já é tratado como epidemia: a taxa cresceu cerca de dez vezes em quatro décadas.
— Esse tipo de conteúdo pode, sim, ser considerado um risco pelo potencial de atingir milhões de crianças e de naturalizar o consumo desses produtos. É uma preocupação de saúde pública — avalia a coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, Ekaterine Karageorgiadis.
Desde 2014, a publicidade infantil na televisão foi submetida a regulamentações que contiveram excessos, após pressão de grupos envolvidos na causa, entre eles o Instituto Alana. É daquele ano a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que é contra a publicidade com intuito de persuadir a criança ao consumo. Mas, na seara da internet, não há regras claras. E, dado o volume de conteúdo, o monitoramento é complexo.
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) informou ao GLOBO que, atualmente, 20 vídeos do YouTube voltados para o público infantil estão sendo examinados após denúncias. Entre esses conteúdos, há alguns envolvendo alimentação. Segundo o órgão, “esse tipo de denúncia tem sido objeto de preocupação constante do Conar”. Embora a definição legal de publicidade envolva uma publicação em espaço pago, já houve casos em que o conselho entendeu se tratar de ação publicitária mesmo sem a existência de pagamento. A última vez em que isso aconteceu foi no início de 2017. Os canais Victor Soares, Garotas Geeks e Gameblast TV mostravam o McLanche Feliz, do Mc Donald’s, e seus brindes. Na ocasião, o Conar entendeu que se tratava de ação de relações públicas com proveito publicitário, e os vídeos foram retirados do ar.
Para evitar que crianças sejam expostas a publicidade camuflada de conteúdo na internet, Ekaterine, do Instituto Alana, ressalta a importância de pais acompanharem o que os filhos veem:
— Se não os deixamos atravessar a rua sozinhos, também não podemos deixá-los navegar na internet sozinhos. Mas não dá para colocar a responsabilidade só sobre o pai quando existe toda uma cadeia de anunciantes e de plataformas bombardeando a criança.
Também conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), ela considera que, mais do que responsabilizar só os próprios youtubers, é preciso cobrar das empresas e da plataforma em que eles são veiculados.
Segundo o YouTube Brasil, o uso da rede de vídeos é destinado a pessoas com mais de 13 anos. O consumo de quem está abaixo dessa faixa etária deve ser feito pelo YouTube Kids, um aplicativo gratuito e com experiência voltada às famílias, que mistura curadoria manual e algorítmica. “Todo conteúdo no YouTube precisa respeitar as diretrizes da comunidade e qualquer pessoa pode denunciar conteúdo que acredite violar as políticas”, informa um porta-voz da empresa. “Quem sobe um conteúdo no YouTube é o responsável por ele, e não o YouTube. Somos uma plataforma aberta e democrática. Temos chefs com programas culinários excelentes e professores que ensinam conteúdo didático de graça, por exemplo. Responsabilizar o YouTube não faz sentido”.
No final de 2016, 11 gigantes do setor alimentício assinaram um documento chamado de “Compromisso pela Publicidade Responsável para Crianças”, em que se comprometiam a não anunciar produtos para menores de 12 anos em suas ações publicitárias. No mês passado, o relatório da auditoria KPMG, que monitorou os anúncios pagos pelas marcas, mostrou que o compromisso foi cumprido em 100% dos casos na televisão e em 98,6% na internet.