Para familiares de vítimas da Kiss, condenação de réus fez justiça
O júri pelas mortes da Kiss se tornou o maior do Judiciário gaúcho
Depois de quase nove anos de espera, por volta das 17h45 desta sexta-feira (10), familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia da boate Kiss, que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos, ouviram o juiz Orlando Faccini Neto anunciar a condenação dos quatro réus acusados por homicídios e tentativa de homicídios simples por dolo eventual.
Eles acompanharam em silêncio a leitura da sentença, na qual o juiz reconheceu a dor das famílias e citou a conta feita pela jornalista Daniela Arbex, no livro “Todo dia a mesma noite” (Ed. Intrínseca), de que cerca de 9.000 anos em vidas foram perdidos na tragédia de Santa Maria (RS).
“Eu me senti aliviada, com dever cumprido. Tinha que dar justiça, não podia dar outra coisa. Errou, pagou. Matou, pagou. Eles mataram nossos filhos. Cada um de uma maneira, mas mataram nossos filhos”, disse Maria Aparecida Neves, mãe de Augusto Cezar, que tinha 19 anos.
Cida, como ela é chamada pelos outros pais que integram a AVTSM (Associação das Famílias de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria), diz que, apesar de ter ouvido durante todos esses anos que buscava vingança, nunca foi essa a luta de quem perdeu alguém na madrugada de 27 de janeiro de 2013. “Queríamos apenas justiça”, afirma.
O júri pelas mortes da Kiss se tornou o maior do Judiciário gaúcho. Presente nos dez dias de duração, ela foi uma das mães que se retirou algumas vezes do plenário para evitar se manifestar e colocar o julgamento em risco. Foram registrados 60 atendimentos médicos, segundo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
“A nossa união, a união da associação, isso que nos fez aguentar. Quando uma desabava, a gente levava lá para baixo, dava água, dava um chá, saía para a rua, ia para a tenda. Nossos filhos fizeram nós nos unirmos e essa família vai continuar”, diz.
A tenda é uma barraca de lona armada em um estacionamento próximo ao prédio do Foro Central onde ocorreu o julgamento em Porto Alegre. As famílias fizeram campanha de financiamento coletivo e conseguiram apoios para hospedagem e transporte para acompanhar de perto o processo.
O caso foi desaforado de Santa Maria para a capital gaúcha depois de pedidos de três defesas, questionando se a cidade onde ocorreu a tragédia poderia ter um júri imparcial.
Nesta sexta, familiares e sobreviventes voltaram a formar o círculo, em pé, de mãos dadas, que fizeram algumas vezes para se apoiarem. Eles aplaudiram e abraçaram os promotores David Medina da Silva e Lúcia Helena Callegari pelo resultado.
Foram condenados pelos homicídios os sócios-proprietários da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que acendeu um artefato pirotécnico durante o show, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente). Spohr teve a maior pena, 22 anos e 6 meses, enquanto os profissionais da banda receberam 18 anos.
Callegari afirmou que vai recorrer da decisão para pedir um aumento da pena.
Pouco depois da leitura da sentença, o juiz Faccini Neto, saiu do espaço do plenário, e foi abraçado por familiares. Ele citou no texto a música “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, também trazida pelo Ministério Público em debate, e disse em um trecho que a pena criminal comunicava aos familiares em luto o respeito do Estado.
Durante o interrogatório de Spohr, ele questionou se alguma vez o sócio da Kiss havia feito manifestação pública de condolências ou algo nesse sentido, em relação aos familiares. Na sentença, como no dia, ele voltou a citar o caso de um dos condenados por outra tragédia vinda de um incêndio, na boate The Station, nos Estados Unidos, onde um dos réus escreveu cartas a mão para todas as vítimas. “Isso não aconteceu aqui”, afirmou na decisão desta sexta.
Dias antes do início do julgamento, Flávio Silva, que perdeu a filha no incêndio e preside a AVTSM, divulgou um vídeo em que relata que teve problemas de saúde depois de descobrir que poderia ser arrolado como testemunha de defesa de Spohr.
Durante os debates, quando os advogados defenderam teses pela desclassificação do crime doloso ou a absolvição dos clientes, seu nome foi citado por alguns deles em sinal de respeito, mas também trazendo vídeos ou falas antigas suas.
Enquanto o juiz lia a sentença, ele foi abraçado pela mulher, Ligiane Righi da Silva, e pela filha Gabrielle. A camiseta que vestia, com a foto da filha que perdeu na tragédia, dizia: “Fui me divertir e paguei com a minha vida”.
“Chegado o dia que a gente alcançou a justiça pelo assassinato dos nossos filhos. Valeu a pena essa luta no sentido de que a gente vai proteger muitas vidas daqui por diante, é a nossa intenção. Esse resultado de hoje não vai trazer nossos filhos de volta, mas vai conseguir evitar que novas famílias percam filhos e filhas nessas tragédias”, disse a jornalistas.
Questionado sobre o que vem a seguir, ele disse que devem descansar para ter fôlego para a próxima etapa da luta, que não terminou com a condenação.