Permissão para compra de armas cresce 1.451% desde 2018
Três anos depois do início da flexibilização da posse de armas no país, o Brasil…
Três anos depois do início da flexibilização da posse de armas no país, o Brasil inflou o potencial de acesso a armamentos por cidadãos comuns, chegando hoje a 46 milhões de permissões de compra concedidas a caçadores e atiradores. Este é o total de armas que, após mudanças recentes na legislação, podem ser adquiridas por membros dessas categorias, que também tiveram crescimento de pessoas registradas. O cenário revela que hoje há 605,3 mil pessoas — se incluídos também os colecionadores —, que têm carteirinhas ativas para acesso a armamento, inclusive pesado, e munição.
Isso é mais do que o total do efetivo de PMs em ação no país, que hoje chega a 406,3 mil agentes, ou de militares em serviço, que somam 357 mil pessoas nas Forças Armadas.
O contingente total de CACs — caçadores, atiradores e colecionadores — triplicou desde 2019. Com isso, hoje já são 1,25 milhão de registros ativos. O número supera o de pessoas autorizadas a ter arma porque cada integrante das três categorias pode ter um registro sobreposto. Ou seja, um caçador também pode ser atirador ou colecionador, por exemplo.
Outro aspecto preocupante é que o total de armas autorizadas para cada registro aumentou desde 2018. Um caçador pode ter até 30 armas e um atirador esportivo, 60, depois que uma série de restrições para compra foram derrubadas.
O total de 46 milhões de permissões para aquisição de armamento é 1.451% maior do que a comercialização consentida em 2018, um ano antes das mudanças legais. Naquele ano, o montante ficava em torno de 3 milhões de armas autorizadas a caçadores e atiradores. Com relação às munições liberadas para aquisição por essas categorias, o salto é ainda maior. A venda permitida atualmente é de 138,5 bilhões de unidades, 1.548% mais do que as 8,4 bilhões autorizadas naquele ano.
Fiscalização precária
Os dados inéditos levantados pelo Instituto Igarapé, a pedido do GLOBO, dão uma dimensão do potencial de arsenal autorizado antes e depois da política belicista do governo Bolsonaro. De acordo com Michele dos Ramos, gerente de Advocacy da entidade, ao se tornar um estilo de vida, o armamentismo passou a alimentar a indústria bélica, e o mercado nunca esteve tão aquecido quanto agora. Michele acredita que a situação chegou a um ponto em que já ultrapassamos um nível de alerta.
— Em termos de dimensão do acesso às armas e munições, chegamos às eleições de 2022 num contexto preocupante. Ao comparar o percentual possível de aquisição no Brasil versus a negligência nesses últimos anos, com o enfraquecimento dos mecanismos de controle dos arsenais, temos um quadro crítico —- avaliou Michele, que ressaltou que, em 2020, o Exército fiscalizou só 2,3% dos 311.908 locais que deveriam ser inspecionados, entre acervo privado de CACs, lojas e clubes de tiro.
Os cálculos feitos pelo Igarapé têm como base os registros ativos das categorias caçadores e atiradores, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, e os limites máximos de aquisição de armas e munições no país. Colecionadores não entraram na estimativa porque não há um máximo de armas estabelecido para eles. A categoria representa hoje 24% do total de 1,25 milhão de registros ativos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). Caçadores e atiradores são maioria.
Em dezembro de 2018, o Brasil tinha 203,8 mil registros ativos de caçadores e atiradores. Em março deste ano, o número foi para 956,7 mil, um aumento de 369%. O total de armas ativas nas mãos dessas categorias é de 792,3 mil unidades.
Pelo apelo entre eleitores, a segurança pública é um tema que sempre mobilizou disputas políticas. Esta é a primeira vez, contudo, que o controle de armas assume tamanho protagonismo às vésperas de uma eleição. Desde a campanha passada, o assunto monopoliza boa parte da agenda de Bolsonaro, para quem “um povo armado jamais será escravizado”. Durante sua gestão, explodiram os registros de CACs, clubes e lojas de armas.
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, ressalta que é improvável que todos os CACs comprem o limite máximo de armas e munições autorizadas. Mas ela destaca o risco de cada vez haver uma conexão maior entre essas categorias, beneficiadas pela flexibilização excessiva, e grupos criminosos.
— Não à toa, temos visto cada vez mais casos da relação do crime organizado com essa categoria, seja se inscrevendo como CACs, seja cooptando pessoas para conseguir acessar essas armas de calibre restrito — ponderou Carolina Ricardo. — Num ano eleitoral, de tanta polarização e violência, é um risco muito grande. Ainda mais com governantes que põem em xeque as urnas e, de forma mais indireta, insuflam essa base que pode sim pegar em armas para fazer alguma loucura.
A pauta das armas já ganhou um território sem precedentes desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003. Desde que assumiu, o presidente assinou 32 atos, entre decretos, portarias e projetos de lei, afrouxando as regras. Antes, um atirador desportivo podia ter acesso a mais armamento à medida que evoluía no grau de competição. O limite era de 16 armas e 60 mil munições. Agora, qualquer atirador, independentemente da experiência, pode adquirir até 60 armas, sendo até 30 de uso restrito, e 180 mil munições por ano. O registro de CAC, que antes vencia em cinco anos, passou a ter validade de dez.
Onda armamentista
Não foi só o governo federal que flexibilizou o acesso ao arsenal. As assembleias estaduais estão criando suas próprias leis para ampliar o direito ao porte de armas. Pelo menos 25 projetos de lei armamentistas tramitam atualmente em todos os estados do Brasil e no Distrito Federal, a maior parte deles com a intenção de garantir a atiradores desportivos a licença para andar armado, segundo os institutos Sou da Paz e Igarapé. Em alguns estados, o benefício é estendido a colecionadores e caçadores. Oito PLs já foram convertidos em lei.
O protagonismo do acesso às armas dado a CACs, em detrimento dos agentes das Forças de Segurança, coloca em xeque as estruturas mais fundamentais de organização do Estado. Além disso, põe em risco o policial que está na ponta e passa a ter que abordar uma população cada vez mais armada:
— É importante lembrar que, numa democracia, o uso da força, sobretudo da letal, é exceção. E o monopólio do uso da força legítima é do Estado. Essas categorias ganharam acesso facilitado a pistolas, fuzis semiautomáticos… E agora, em alguns estados, depois dessa movimentação das assembleias, podem transitar com essas armas nas cidades. Isso tem impacto direto na ordem pública — diz Michele.