ANIVERSÁRIO

Pica-pau 80 anos: com legião de fãs, canal no Yotube tem milhões de inscritos

Desenho voltou à TV brasileira e tem dez vezes mais seguidores do que nos EUA na web; especialistas veem ligação direta entre o personagem e seu público brasileiro

Pica-pau 80 anos: com legião de fãs, canal no Yotube tem milhões de inscritos

O Pica-Pau sempre foi um campeão de audiência no Brasil. Ou quase. Durante décadas, o pássaro aloprado dos desenhos animados, que chega aos 80 anos no próximo dia 25, funcionou como um curinga na programação da TV aberta no país. Antigos episódios produzidos entre os anos 1940 e 1970 tapavam qualquer buraco na grade e garantiam picos à emissora que detivesse seus direitos de transmissão. Em novembro de 2006, a animação estreou na Record, sua casa desde então, e provocou o que a imprensa da época chamou de “efeito Pica-Pau”: derrotou a Turma do Chaves e roubou do SBT o segundo lugar da audiência na faixa das 18h.

Hoje, uma disputa como a de 14 anos atrás parece impossível. Chaves foi retirado do ar em toda a América Latina em agosto, e a programação infantil diminuiu de tamanho na TV aberta, enquanto ganhou seus próprios canais, cheios de conteúdo, na TV paga e na internet. Bem ou mal, o Pica-Pau resiste: após uma geladeira de um ano e meio, o desenho voltou a ser exibido há um mês pela Record, ainda que timidamente, às 10h de domingo. Nunca o personagem havia ficado tanto tempo fora da programação brasileira. Em nota, a emissora informou que mantém os direitos de transmissão do desenho até outubro de 2021 e que a volta à grade “reverencia a produção pelas décadas de sucesso”.

E os brasileiros estão mesmo entre os maiores fãs da animação. A NBC Universal descobriu isso em 2017, quando lançou canais no YouTube para exibir todos os episódios do Pica-Pau, com versões em inglês, espanhol e português. A versão brasileira tem 5,45 milhões de assinantes — o dobro da Espanha e América Latina e dez vezes mais que dos Estados Unidos. De olho nestes fãs, o estúdio produziu dois novos episódios passados no Brasil em 2018 — e, desde este ano, voltou a produzir novos desenhos da Turma do Pica-Pau, mas apenas para a web.

— O Pica-Pau foi a primeira animação a ser exibida na TV aberta do Brasil e marcou gerações. Isso ajuda a explicar sua popularidade por aqui e também o apelo nostálgico que o personagem tem para muitas pessoas. Além disso, na maioria dos episódios ele sempre consegue se safar das encrencas de forma esperta e bem-humorada. Acho que o brasileiro ainda se identifica com isso — aposta a animadora e artista digital Renny Pereira, que tem trabalhos para Cartoon Network e Marvel.

A incorreção do personagem sempre foi alvo de admiração, mas também de críticas. Em junho do ano passado, ele entrou para o rol dos desenhos animados atacados pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, junto com “Frozen”, “Tio Patinhas”, “Popeye”, “Bob Esponja”. Numa audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família, Damares classificou o pássaro como “arrogante, egoísta, malcriado, desobediente, malvado”.

Para a psicanalista Morgana Rech, doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, há uma distorção neste tipo de crítica ao poder de influência dos desenhos animados. Ela também vê um misto de censura e moralismo que deságuam no que chama de “mar sem imaginação, simbolismo e liberdade de expressão”.

— Pica-Pau não é vilão nem mocinho. Ele muda de posição o tempo todo. Da perspectiva do personagem, ele se vira com o pouco que tem para sair de situações em que ele se daria muito mal. Poderia muito bem ser um artista brasileiro tentando sobreviver nesse terreno infértil — ela diz.

Encarnação do malandro

Doutorando em Ciência da Comunicação pela Universidade do Minho, em Portugal, e fã declarado do Pica-Pau, Luiz Alberto Moura também enxerga essa “ligação direta” entre o personagem e os brasileiros:

— O Pica-Pau é a figura clássica do anti-herói, um personagem com quem as crianças se divertem justamente porque não é idealizado ou “certinho”, como o Mickey, nem “politicamente incorreto” como o Pato Donald. É o “malandro”, aquele que sempre está em dificuldades e precisa dar um jeito na situação.

O desenho estreou no Brasil apenas um dia após a inauguração da TV no país, em 19 de setembro de 1950, com uma transmissão legendada na TV Tupi. Mas sua primeira aparição foi nos cinemas, dez anos antes, como antagonista do personagem Andy Panda no episódio “Knock knock” (no Brasil, “O Pica-Pau ataca novamente”). O desenho era uma criação de Walter Lantz, cartunista, produtor e pioneiro da animação nos EUA. Ele fazia desenhos para a Universal numa época em que todo estúdio tinha seu cast animado: a RKO distribuía os desenhos de Walt Disney, os Looney Tunes pertenciam à Warner, e Tom e Jerry brilhavam na MGM.

Sua risada característica foi criada por Mel Blanc, lendário dublador dos estúdios de animação, autor das vozes originais de praticamente todos os personagens do Looney Tunes. Ele pegou “emprestada” a gargalhada do Coelho Feliz, que dera origem ao Pernalonga no mesmo ano, para criar a do bichinho da Universal. Após quatro episódios, Blanc assinou contrato de exclusividade com a Warner, mas não levou a risada do Pica-Pau consigo. Quando a TV estreou no Brasil, Lantz estava sem trabalho: um processo do dublador o obrigou a fechar seu estúdio em 1949. Com a Universal Pictures, voltou a produzir episódios de 1951 a 1972. Depois disso, o desenho teve novas versões em 1999 e 2018, além de um malfadado longa em live-action em 2017.

Ao todo, Walter Lantz produziu 196 desenhos do Pica-Pau em 32 anos. São desta fase os episódios que os fãs brasileiros amam e transformaram em memes e bordões, como “E lá vamos nós” ou “Em todos estes anos nesta indústria vital…”, e a quem o cartunista e roteirista Arnaldo Branco credita parte de sua educação. Hoje, ele se diz preocupado com os filhos de pais que se alarmam demais com os desenhos a que eles assistem:

— Quem vai preparar os filhos deles pros pica-paus da vida real? Eu conheci mais de um, que pareceriam inverossímeis até como personagens de desenho.

Arnaldo, que escreve roteiros para animações infantis atuais, como “Irmão do Jorel”, não acredita que Lantz teria muito sucesso se tentasse produzir o Pica-Pau hoje.

— Em um grande estúdio provavelmente seria vetado (ou desidratado na sala de roteiro), mas certamente faria sucesso independente.

Procurada, a Universal Pictures disse que não haverá comemoração para os 80 anos do Pica-Pau, além de novos episódios no YouTube.