Planejamento falho e atraso em compras emperram vacinação contra covid
Uma série de entraves como falhas entre os sistemas de informação de saúde, problemas de…
Uma série de entraves como falhas entre os sistemas de informação de saúde, problemas de logística, falta de cadastro prévio dos grupos prioritários e a pulverização da vacinação pelo país em um momento de escassez de doses tem atrasado a campanha de imunização contra a Covid-19, iniciada em 17 de janeiro.
Atualmente, são aplicadas cerca de 220 mil doses por dia. A título de ilustração, o ritmo é muito mais lento que o praticado em campanhas de vacinação contra a gripe. Apenas na primeira quinzena da campanha em 2020, realizada já em meio à pandemia da Covid-19, foram imunizadas cerca de 23 milhões de pessoas, ou 1,3 milhão por dia, aproximadamente.
Se houvesse imunizantes e se fossem adotados o passo de 2020 e os mesmos critérios, todos os brasileiros com mais de 18 anos seriam vacinados até outubro deste ano -evitando milhares de novas mortes.
Mas o ritmo tem sido outro, embora ele comece a ganhar fôlego. Na quinta (11), ao ser criticado pela lentidão atual durante sessão do Senado, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou que espera vacinar metade da população até junho e o restante até o fim do ano.
Por ora, o estoque atual de vacinas contra o coronavírus distribuídas aos estados é de cerca de 12 milhões de doses, com as quais é possível imunizar quase 6 milhões (4% dos brasileiros adultos). A expectativa é que no fim deste mês a oferta de vacinas aumente. O Butantan diz que a instituição passará a entregar 600 mil doses diárias da Coronavac a partir do dia 23.
Até a quinta, 2/3 desse público, ou 4 milhões de pessoas, haviam recebido a primeira dose, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa formado por Folha, UOL, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo e G1. Os dados são coletados junto às secretarias estaduais de Saúde.
A lentidão na divulgação dos números por muitos estados, contudo, prejudica uma avaliação precisa da evolução do ritmo da vacinação. Como muitas secretarias não informaram o número de vacinados na primeira semana, é difícil dizer se a imunização foi se intensificando ao longo do tempo ou se havia problemas nos dados.
Segundo especialistas ouvidos pela Folha sobre a demora no processo, à escassez de vacinas somam-se falhas de estratégias do Ministério da Saúde, dos estados e municípios.
Para a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o PNI (Programa Nacional de Imunizações) de 2011 a 2019, nunca se começou uma campanha nacional com tão poucas vacinas e com tanta falta de organização, planejamento e orientação por parte do Ministério da Saúde.
A médica afirma que o fato de o ministério ter decidido pulverizar as escassas doses das duas vacinas pelo país também é um outro fator que tem gerado problemas na ponta do sistema.
“Seria mais efetivo se tivessem concentrado, por exemplo, as 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca nos municípios da região Norte, onde a carga da doença está alta, com novas variantes do vírus circulando. Como a vacina tem um intervalo de até três meses para a aplicação da segunda dose, há mais velocidade na vacinação e a logística é mais simples” diz.
“Existem áreas no Norte às quais demoro 15 dias para chegar de barco. Se eu usei a Coronavac, tenho que fazer isso de novo em 30 dias.”
Proporcionalmente, quem mais vacinou a população maior de 18 anos foi o Amazonas, mas o percentual ainda é baixo: 6% até a quinta-feira. O estado recebeu doses extras em razão do colapso que vive no sistema de saúde, com UTIs lotadas e recorde de mortes.
Outros estados da região questionam os critérios de distribuição. É o caso do Pará, que enviou ofício ao Ministério da Saúde pedindo que o cálculo fosse reconsiderado. Vizinho ao Amazonas, o estado foi um dos que menos recebeu doses quando levada em conta sua população.
Na opinião de Domingues, a campanha começou sem regras de priorização de municípios mais afetados. “Nesse momento de escassez, municípios com baixa incidência não deveriam receber a vacina.”
A médica epidemiologista Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), concorda.
“A meta não tem que ser só vacinar a população [prioritária], mas as regiões onde tem mais vírus circulando, para impedir a cadeia de transmissão, e populações mais vulneráveis socialmente. Com isso, eu potencializo o impacto, mesmo com pouca vacina”, diz.
A exigência de registro nominal dos vacinados também tem atravancado a imunização. Em muitas unidades de saúde, os profissionais precisam preencher manualmente os registros em planilhas, com nome, número de documento e endereço do vacinado, para só depois lançar as informações nos sistemas das secretarias estaduais e o Ministério da Saúde.
É a primeira vez que isso acontece. Nas campanhas anteriores, bastava somar o número de vacinados.
“Você vê por aí as pessoas anotando manualmente em planilha. Tem letras que são uns garranchos, outra pessoa vai digitar aquilo depois sem ter o documento do vacinado para conferir, vai ter erro, vai ter dificuldade. Como isso vai ser colocado no sistema?, questiona Domingues.
Para a epidemiologista, a campanha poderia ter ganho velocidade se o Ministério da Saúde tivesse feito um pré-cadastro online, uma vez que já sabia que seria necessário o registro nominal.
Ela também cita o fato de haver duas vacinas diferentes, com necessidade de duas doses cada uma como desafio. “Hoje eu recebo a AstraZeneca, amanhã a Coronavac, depois a AstraZeneca de novo. As vacinas não são intercambiáveis. Quem vai segurar a pressão se o vacinador não puder aplicar a vacina que está na geladeira porque não é a mesma tomada pela pessoa antes?”
Para o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP, a pulverização da vacinação em tantas unidades de saúde é a principal responsável pela lentidão.
“Em São Paulo, a distribuição para 480 unidades básicas e hospitais é uma coisa insana. Imagina: tem o estoque da Coronavac no Butantan, a secretaria define para onde vai. O município leva para uma central, que começa a distribuir para as unidades de saúde. As unidades não funcionam no fim de semana. Olha o tempo que se gasta com isso!”
Segundo ele, desde o início, o município deveria ter usado locais amplos, como os estádios de futebol, para funcionarem como centros de vacinação, de segunda a domingo. “Você consegue montar linhas de produção, reúne pessoal e dá velocidade ao processo.”
Questionado pela reportagem, o secretário-executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Jurandi Frutuoso, coloca a culpa da lentidão na insuficiência de doses. “Se mais tivesse, o SUS seria capaz de acelerar o processo e imunizar em tempo adequado.” Para ele, o atraso não é em relação à vacinação em si, mas sim no registro das informações.
Sobre a crítica dos epidemiologistas em relação à falta de priorização das regiões mais afetadas, Frutuoso afirma que todos os estados estão com a pandemia em crescimento acelerado, sendo que 14 deles registram taxas de ocupação de leitos hospitalares acima de 70%.
O governo de Jair Bolsonaro, no segundo semestre de 2020, recusou três ofertas do Butantan para a compra da Coronavac e só se decidiu no mês passado, quando o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ganhou popularidade com a vacinação.
Também abriu mão de encomendar ao menos 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer, e não quis negociar com a Johnson & Johnson. E as negociações para a importação de 10 milhões de doses da Sputnik e 20 milhões da indiana Covaxin só começaram no início do mês.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que a pandemia da Covid-19 dificulta a comparação com outras campanhas de vacinação, “além de se tratar de uma vacina nova, com produção limitada, com cronogramas de entrega irregulares e necessidade de duas doses”.
O ministério afirma também que a campanha contra a Covid-19 é a primeira no país iniciada com vacinas com uso de registro do vacinado nominal, e houve necessidade de reestruturação do sistema de informação e da interoperabilidade com outros sistemas, de formar a abarcar diferentes realidades das regiões (sistemas próprios, informatização das salas de vacina e conectividade).
“O sistema tem enfrentado períodos de instabilidade e foram identificadas algumas dificuldades na interoperabilidade das diferentes formas de entrada de dados.”
Por fim, o ministério diz que a vacinação regionalizada foi considerada nas discussões técnicas do PNI, mas que o país se encontra em transmissão comunitária em todo seu território, com registro de casos graves e óbitos em todas as UF.
Entretanto, reforça o ministério, diante da criticidade do estado do Amazonas, foi acordada uma reserva de fundo estratégico de 5% das doses de vacinas que venham a ser entregues ao Ministério da Saúde, visando beneficiar regiões com maiores necessidades, a exemplo da região Norte.