Déficit de cargos

PM de SP sofre ‘apagão’ de comando em meio a casos de violência policial

Das 2.961 vagas para os tenentes existentes na corporação, há um déficit de 450 cargos (15%), cerca de duas vezes a capacidade de formação anual da academia do Barro Branco

As recorrentes casos de violência envolvendo policiais militares de São Paulo têm ligação direta, segundo especialistas ouvidos pela Folha, com a distribuição do efetivo que provocou uma espécie de apagão no comando operacional na corporação paulista, com déficit de tenentes e sargentos.

As recorrentes casos de violência envolvendo policiais militares de São Paulo têm ligação direta, segundo especialistas ouvidos pela Folha, com a distribuição do efetivo que provocou uma espécie de apagão no comando operacional na corporação paulista, com déficit de tenentes e sargentos.

Das 2.961 vagas para os tenentes existentes na corporação, há um déficit de 450 cargos (15%), cerca de duas vezes a capacidade de formação anual da academia do Barro Branco, a escola de oficiais da Polícia Militar paulista.

Já com relação aos sargentos, das 7.483 vagas destinadas às 2ª e 3ª classes, 2.196 (29,3%) não estão ocupadas, segundo dados do governo.

As funções de sargento e tenente são as duas mais importantes instâncias de fiscalização do policiamento de rua, já que esses são os comandantes diretos das equipes e os responsáveis pela cobrança do cumprimento de normas.

Sem fiscalização presente, segundo os especialistas, aumentam as chances dos chamados desvios de conduta.

“Está acontecendo um grave fato na Polícia Militar. Ela não está tendo fiscalização, ela não está tendo comando. As ocorrências evidenciam isso”, afirma o juiz Ronaldo João Roth, do TJM (Tribunal de Justiça Militar) de São Paulo, ex-oficial da PM paulista e um dos magistrados mais cultuados entre os próprios integrantes da corporação.

“Se você não tem tenentes suficientes, que coloque, então, os tenentes que estão nos quartéis para trabalhar na rua. O serviço administrativo deve ser esvaziado da presença de oficiais. Basta lembrar da Operação Ubirajara. A corregedoria comprovou com escutas telefônicas os desvios de condutas de policiais que o comando não detectou.”

A operação mencionada pelo juiz foi uma investigação da Corregedoria da PM de 2018 que levou à condenação de 42 policiais militares de um único batalhão da capital, envolvidos com o crime organizado.

Outro especialista que aponta ligação direta entre a distribuição de efetivo e os casos de violência policial é o coronel da reserva Glauco Carvalho, ex-comandante da PM na capital e doutor em ciência política pela USP. Para ele, os casos são fruto de uma engenharia que diluiu a força policial nas ruas e levou os oficiais para dentro de quartéis.

Segundo Carvalho, isso ocorreu por uma soma de fatores, incluindo o congelamento do efetivo da Polícia Militar, que é praticamente o mesmo nos últimos 20 anos apesar do crescimento da população de mais de 20%.

Outro ingrediente para o cenário atual foi a ampliação do número de batalhões pelo estado, apesar do efetivo congelado. Os batalhões são estruturas de comando que demandam oficiais para comandar seções administrativas.

A corporação tem 102 batalhões espalhados pelo estado. No final dos anos 1990, segundo integrantes da polícia, o número não chegava a 60.

Em 2012, segundo informações enviadas ao TCE (Tribunal de Contas do Estado) pela PM, a corporação tinha um efetivo de 84.962 policiais. Desse total, 23.788 estavam no serviço administrativo.

A falta de efetivo, em especial nas regiões periféricas na capital, deixa o policial fragilizado porque há um número insuficiente de policiais para apoiá-lo em caso de ocorrências de maior gravidade.

“O policial hoje se sente complemente isolado e abandonado no serviço operacional. A prática da violência e das execuções extrajudiciais, não raramente, são uma questão de sobrevivência do policial. Essa é uma hipótese. Não raramente ele e sua família são ameaçados. Não tem a quem recorrer. Não tem suporte de efetivo operacional”, diz

Para Carvalho, há uma necessidade de redistribuição de efetivos na polícia, com a possível eliminação da instância de batalhão e a permanência apenas dos comandos regionais maiores, os CPAs (Comando de Policiamento de Área) e as companhias.

Carvalho também aponta a necessidade de uma redistribuição mais justa do efetivo entre as regiões mais nobres e periféricas. Ele cita como o exemplo a diferença entre Moema, zona sul, e Guaianazes, na zona leste. A primeira tinha um policial para cada grupo de 280 habitantes, enquanto a segunda tem um policial para 1.600 pessoas.

Para a socióloga Viviane de Oliveira Cubas, do NEV (Núcleo de Estudo da Violência) da USP, a falta de comandantes não é suficiente para explicar os casos de violência policial e nos faz questionar sobre qual polícia temos nas ruas.

“Quando você vê uma pessoa caída no chão e três ou quatro policiais em cima dela dando cacetada, isso não é questão de treinamento. Que polícia é essa? Talvez você possa até pensar que a presença de um tenente ou de um sargento próximo possa evitar isso, mas e quando ele não estiver?”

Essa fiscalização constante, ainda segundo Cubas, não seria necessária se tivéssemos policiais que se vigiassem, com freios morais próprios, como se espera de policiais.

A socióloga também defende pesquisas para entender como esses policiais se enxergam como profissionais. “Há uma tendência de individualizar o problema , mas pela frequência e pela recorrência desses casos, não é isso.”

“O impacto dos casos de violência policial é negativo não só para a população, que passa a olhar o policial com outros olhos, mas também para o bom policial. Muitos deles têm nos dito que está difícil vestir a farda porque eles ficam com vergonha. É legítimo que sintam isso”, diz ela.

OUTRO LADO

A Secretaria da Segurança de São Paulo informou que a gestão João Doria (PSDB) já investiu mais de R$ 400 milhões para modernizar a estrutura policial, melhorar as condições de trabalho dos agentes de segurança e reforçar o efetivo policial para ampliar a capacidade de ação das polícias.

“Quase 6.000 novos agentes foram formados e incorporados às diversas áreas de atuação policial. Outras 6.000 vagas serão preenchidas por concursos em andamento e mais 8.400 contratações já foram autorizadas pelo governador”, diz a nota.

“Excessos cometidos por alguns policiais em serviço não refletem a realidade da atuação policial em São Paulo e não devem ser analisados como padrão das instituições de segurança no estado.”

Ainda segundo o governo paulista, a Polícia Militar mantém atenção especial ao sistema de fiscalização da conduta dos policiais em todos os níveis hierárquicos, “inclusive com a aplicação de ferramentas de tecnologia e inteligência para o registro de atividades operacionais”.

“O histórico da Polícia Militar mostra que a instituição é implacável contra desvios de conduta e não tem compromisso com o erro. Desde janeiro de 2019, 220 policiais militares foram excluídos por violar os princípios e valores da instituição. A PM conta, ainda, com a Corregedoria, órgão responsável pelo Sistema de Justiça e Disciplina internos”, diz a nota.

A Secretaria da Segurança informou ainda que há uma formação humanística e o processo de treinamento continuado, com reforço doutrinário e prático nos procedimentos operacionais e legislação, além do forte Sistema de Saúde Mental, que apoia, monitora e acompanha os policiais militares.​