Policiais militares necessitam de formação voltada à defesa da democracia, avaliam especialistas
Na última sexta-feira (28), a Polícia Civil anunciou o indiciamento do capitão da Polícia Militar…
Na última sexta-feira (28), a Polícia Civil anunciou o indiciamento do capitão da Polícia Militar Augusto Sampaio de Oliveira Neto pela agressão cometida contra o estudante Mateus Ferreira da Silva durante manifestação no dia 28 de abril, em Goiânia. Para o delegado Izaías Pinheiro, que conduziu o inquérito, o PM agiu de maneira desproporcional, apesar de afastar a hipótese de tentativa de homicídio. Pelo mesmo episódio, o capitão também foi indiciado pela própria Polícia Militar por lesão corporal grave – medida que foi anunciada no último dia 12 de junho.
Apesar do caso de Mateus ter gerado grande repercussão na mídia e na sociedade como um todo, o episódio de sua agressão é apenas mais um dentro inúmeros ocorridos no País nos últimos anos em situações semelhantes. A despeito do importante trabalho policial na defesa do patrimônio público e privado quando grupos isolados iniciam atos de vandalismo durante manifestações, casos de excesso policial já não são mais novidade para os brasileiros. Os casos de truculência se proliferam a cada nova temporada de protestos e nem jornalistas escapam às agressões.
Para o presidente da comissão de Direito Militar da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), Clodomir Pimentel, a origem do problema está, sobretudo, no sistema de formação dos policiais militares. “Todo o ordenamento militar do Brasil é oriundo de um sistema arcaico, de 1964. Naquela época, criou-se uma estrutura criada para proteger o Estado nacional, a segurança nacional, mas não pensou-se no eixo humano, ou seja, no próprio militar, que é quem vai exercer a segurança”, afirma.
O advogado salienta que dentro da estrutura militar os próprios policiais são privados de alguns direitos, inclusive o do voto – no caso de recrutas – e o de greve. Esse fator somado a uma falta de preparo seriam influenciadores em casos de excessos em manifestações.
“É um contrassenso. Quando se depara com um movimento social, estudantil, de reivindicações, é notório que não temos uma polícia preparada para esse tipo de evento, que na verdade é democrático”, pontua Clodomir. “Uma das primeiras instruções de um policial militar é aprender a atirar. Esquece-se de todo aspecto ontológico, social, deontológico, que possa incutir na cabeça do policial que arma não é tudo; que é um instrumento de defesa, não de ataque”, complementa.
Na visão do advogado, os policiais são treinados para ver os manifestantes como inimigos a serem combatidos. Segundo ele, na academia não são repassados aos militares questões que abordem os valores humanos e sociais, mas apenas uma filosofia combativa. Além disso, ressalta, somam-se a essas questões o déficit estrutural e de pessoal dentro da estrutura militar como outro fator preponderante para a continuidade dos excessos registrados.
“Para eles, faltam equipamentos adequados. Ou usam uma arma letal ou o cassetete. O governo quer que mantenha a ordem. O comando quer manter a ordem. Mas não tem essa condição para trabalhar”, avalia. No fim das contas, para Clodomir, a problemática não está associada a determinados agentes, mas é de ordem estrutural. “Não é culpa do policial em si. É culpa da sistemática que não doutrinou essas pessoas para essa questão”, diz
Dados do estudo “Perfil dos Estados e Municípios Brasileiros 2014” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontaram que, naquele ano, a Polícia Militar goiana possuía um contingente de 11.950 agentes – uma proporção de 1 para cada 538 habitantes. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o ideal seria um policial para cada 450 habitantes, o que resultaria em 14.495 policiais em atuação.
Estrutura deficitária
O fator estrutural é apontado como preponderante também por Murillo Rodrigues dos Santos, presidente da Comissão de Psicologia Organizacional e do Trabalho do Conselho Regional de Psicologia em Goiás (CRP-GO). Mas para além da questão corporativa, ele analisa a condição do indivíduo. “Há um déficit muito grande de policiais, o que gera uma sobrecarga de trabalho e uma exigência maior de volume de atividades. Isso se reflete no humor do policial”, acentua.
A própria estrutura militar influencia o psicológico dos agentes. “Existe uma rigidez de comportamento. Tem que seguir ordens sem margem para questionamento e fazer com que a lei se cumpra. É uma carga muito grande, realmente estressante”, explica o especialista.
Todos esses fatores podem acabar desencadeando rompantes de violência em uma situação caótica como uma manifestação. “Se ele está em uma situação de emergência, passando por algo pela primeira vez e tem que ter uma reação espontânea, a situação é muito mais estressante”, defende o psicólogo.
Nesse sentido, Murillo acredita que não é dado aos policiais o preparo adequado para lidar com situações como a de uma grande manifestação. Falta, diz ele, um treinamento que propicie aos agentes o controle sobre suas próprias emoções.
“A gente não pode de forma nenhuma procurar culpados, mas entender que cada um naquele momento cumpre um papel social. Policiais também são trabalhadores e têm que ter cuidado com suas emoções e com sua integridade física”, afirma. “Agora, os excessos, na medida em que existem, devem ser apurados.”
Aspecto cultural
O doutor em Sociologia e professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) Dijaci David de Oliveira vê na violência um fenômeno cultural e histórico. “É cultural na medida em que algumas práticas vão se tornando recorrentes e, ao invés de serem objetos de investigações e punição, se faz um discurso normalizando a prática”, afirma.
Ele analisa a perpetuação do discurso do “bandido bom é bandido morto” como sintoma dessa cultura de violência, que se reforça em períodos eleitorais. “Se os cidadãos querem mais segurança, então os gestores ou aspirantes a gestores vão prometer que darão respostas mais contundentes para enfrentar a violência”, avalia o sociólogo.
A solução passa pela vontade política dos gestores, o que significa que o gestor tem que demonstrar e dar exemplos claros de que possui compromisso com política de enfrentamento da violência policial, pontua Dijaci. Mas só isso não basta. Para ele, mecanismos de fiscalização e controle são essenciais.
“É fundamental que se fortaleçam as várias estruturas de controle da atividade policial tais como ouvidorias, corregedorias e que o Ministério Público (que é o responsável legal pelo controle externo) seja atuante”, diz o professor. “Todavia, a maior parte das corregedorias funciona precariamente e as ouvidorias não gozam de autonomia suficiente para que possam realizar seu trabalho de forma independente. Sem estrutura e sem orçamento, podem muito pouco.”
Código de Ética
Uma possível saída para mudar o status quo foi anunciada pelo secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás, Ricardo Balestreri, que em 2 de maio prometeu a instituição de um novo Código de Ética para a Polícia Militar. Segundo afirmou à época, o documento já estava elaborado e se encontrava na fase final de análise. Apesar disso, nenhuma novidade foi apresentada desde então.
A ideia, explicou Balestreri, é modernizar as práticas militares. “A PM de Goiás é uma das melhores e que mais produz no Brasil. São homens e mulheres que, diariamente, protegem a população”, afirmou.
Em audiência pública na Assembleia Legislativa de Goiás, realizada no dia 8 de maio, Balestreri deu pistas do caminho pelo qual pretende guiar a Polícia Militar goiana. Para ele, as forças de segurança precisam estar em defesa da democracia. “Há um paradigma predominante que a segurança pública trabalha na base prioritária do enfrentamento. Por que há esse paradigma? Porque é um paradigma herdado lá atrás, no Estado Novo, e depois reerdado no período ditatorial de 20 anos”, disse.
O secretário declarou que, apesar de a PM carregar ranços de períodos ditatoriais, seu caráter militar não deve necessariamente antagonizar com a defesa da democracia. “Operadores policiais, civis ou militares, precisam ser operadores da cultura da democracia. Civis e militares porque a estética militarizada não descompromete necessariamente a polícia com a democracia”, ressaltou, citando exemplos de diversas corporações militares em todo o mundo.
No entanto, ele pontuou que a Polícia Militar não deve se guiar pelos mesmos princípios de corporações como o Exército ou a Aeronáutica. “As Forças Armadas são forças de ataque. São defensivas e agressivas no sentido admissível dos estatutos democrático do mundo inteiro. Forças policia são defensivas. É outro tipo de enfoque ideológico. Elas devem usar a força desde que em casos inevitáveis e incontornáveis, e desde que de uma forma como preconiza o órgão nos princípios da progressão racional e proporcional da força”, afirmou, enfatizando que unidades policiais devem acompanhar manifestações para proteger o exercício democrático, e não para constrangê-lo.
O professor Dijaci de Oliveira vê com bons olhos a postura adotada por Balestreri, especialmente no que tange à formatação de um novo Código de Ética. “É um bom começo. De todos os secretários de segurança que passaram pelos últimos governos, poucos tiveram a coragem de assumir que a polícia errou. Em geral passam a maior parte do tempo vasculhando a história da vítima para ver se encontram algo contra ela”, declarou.
O cientista social acredita que a modernização da polícia não deve se dar apenas com armas, carros e computadores de última geração, mas também com sua proximidade com a população. “A formação policial e a mudança do Código de Ética são importantes. Todas as categorias profissionais têm. Médicos negligentes são punidos, engenheiros que atuam em desacordo com a profissão são punidos. E se o código não corresponde ao nosso tempo, deve ser revisto”, analisa. “Mas, como disse, esse é apenas um passo. Precisamos de muitas outras respostas e de uma clara demonstração do governante de que possui vontade política em fazer uma segurança com justiça para todos.”
O posicionamento é semelhante ao do presidente da comissão de direito militar da OAB-GO, Clodomir Pimentel: “Mexer apenas no Código de Ética não resolve. É preciso mexer na situação institucional, social, e democrática e criar um mecanismo mais humanitário e direcionado às perspectivas sociais dentro do oficialato”, pontua.