Produção global de vacinas é ameaçada por nacionalismo de matérias-primas
Enquanto a demanda global por vacinas contra a Covid-19 ultrapassa em muitas vezes a atual…
Enquanto a demanda global por vacinas contra a Covid-19 ultrapassa em muitas vezes a atual oferta de imunizantes, as práticas protecionistas adotadas por governos para obterem os estoques disponíveis têm sido abrangentes. Além das próprias doses, ingredientes e itens necessários à produção e distribuição são retidos por Estados nacionais, de frascos a nanopartículas de lipídios. Produtores globais protestam contra as práticas, que podem pôr em risco as cadeias globais de suprimentos.
Adar Poonawalla, presidente do Instituto Serum da Índia, o maior centro produtor de vacinas do mundo, é um dos críticos mais recorrentes do protecionismo. Segundo ele, o “nacionalismo das matérias-primas” já levou muitos institutos e fabricantes, incluindo o que ele preside, a descumprirem prazos e compromissos. Seu principal alvo é a decisão americana de barrar a exportação de matérias-primas.
— Existem muitas bolsas, filtros e outros itens essenciais de que os fabricantes precisam, como no caso da vacina Novavax. Somos um grande fabricante e, para isso, precisamos desses itens dos Estados Unidos. Agora os EUA decidiram invocar a Lei de Defesa, na qual há uma subcláusula que impede a exportação de matérias-primas cruciais — afirmou Poonwalla em um painel de discussão do Banco Mundial.
Ao contrário do ano passado, quando governos explicitamente restringiram a exportação de itens médicos, até o momento apenas a União Europeia adotou um regime formal de controle das remessas de vacinas. No dia 30 de janeiro, entrou em vigor um mecanismo que permite que países do bloco retenham doses se o envio “apresentar uma ameaça ao cumprimento do Acordo de Compra de Ativos (APA) firmado com as produtoras”.
Até agora, o dispositivo foi invocado apenas pela Itália, que no começo deste mês travou uma remessa de 250 mil vacinas da AstraZeneca destinadas à Austrália argumentando que o país oceânico “não era vulnerável”. Em uma entrevista coletiva nesta quarta-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ameaçou bloquear a exportação de todas as vacinas produzidas em países do bloco para fazer frente à “crise do século”.
Em um comunicado deste mês, a Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA) disse que desafios “estão sendo observados em todas as etapas de fabricação de vacinas, que incluem bolsas de biorreator, sistemas descartáveis, meios de cultura de células, filtros, esterilização gama , frascos etc”.
Um dos países mais criticados são os Estados Unidos — que, segundo o Banco Mundial, são os maiores exportadores mundiais de ingredientes e itens de vacinas. Joe Biden e Donald Trump invocaram a Lei de Produção de Defesa, ordenando que indústrias direcionassem seus esforços para expandir a fabricação. Os subsídios concedidos a produtores parecem ter sido condicionados a prioridade de acesso. Como resultado, a exportação de itens como seringas e equipamentos de produção necessita de autorização.
Há vários relatos de que isso tem gerado desequilíbrios nas cadeias de produção internacionais. Nesta semana, Mahima Datla, presidente da companhia farmacêutica indiana Biological E, disse ao Financial Times que o protecionismo americano “não só dificultará a expansão das vacinas contra a Covid, mas, tornará a fabricação de vacinas comuns extremamente difícil”. Martha Delgado, da Chancelaria do México, também disse que laboratórios mexicanos não estão recebendo filtros necessários para a produção das vacinas.
O domínio da cadeia de produção é considerado um dos fatores para a vacinação americana estar tão avançada. Peter Berman, professor de Saúde Pública na Universidade de British Columbia em Vancouver, observa que Estados Unidos e Canadá fizeram compras antecipadas de vários imunizantes. Apesar disso, mais de 21% dos americanos já recebeu ao menos uma dose, enquanto no Canadá este índice é de 7%.
—A despeito das compras antecipadas, o Canadá não produz estas vacinas para a Covid, e os EUA, sim. Quando chegou a hora de expandir a vacinação, houve uma espécie de competição, e o Canadá descobriu que seu suprimento estava atrasado — disse Berman.
Isto se relaciona à prioridade que o governo Biden tem concedido à vacinação da população americana. O democrata deseja deixar claro à população americana que ela é sua prioridade máxima, chegando a reter 30 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, que nem mesmo foi aprovada no país.
Oficialmente, o governo americano tem dito que vacinará primeiro a sua população, tendo feito investimentos para isso. O país reaproveitou instalações existentes, e assumiu riscos comerciais ao investir bilhões para acelerar o desenvolvimento de vacinas. Na semana passada, uma porta-voz da Casa Branca disse que o “presidente está profundamente focado na questão da expansão da vacinação global, da fabricação e entrega, que serão cruciais para acabar com a pandemia”.
— Os Estados Unidos expandiram significativamente a capacidade de produção. Em poucos meses, o país terá terminado a sua vacinação, e as doses adicionais irão para outros países. Teria sido muito pior se não tivessem aumentado a sua linha de produção — disse Tinglong Dai, professor da Escola de Negócios da Universidade John Hopkins.
Além dos Estados Unidos, há relatos de protecionismo por parte de China e da Índia, que atrasaram a entrega de doses dando explicações pouco claras. O Brasil foi afetado por atrasos de insumos vindos de ambos os países, posteriormente revertidos. Autoridades das duas nações asiáticas já declararam publicamente que buscam equilibrar a demanda interna com a externa. Na Índia, o governo de Narendra Modi sofre pressão da oposição por ter exportado quase o dobro do número de doses em comparação ao número de inoculações já realizadas domesticamente, apesar do aumento das infecções.
Segundo Prashant Yadav, professor especialista em suprimentos de Saúde do Instituto Europeu de Administração de Empresas (Insead), os bloqueios de alguns países podem afetar novas fábricas de produção de vacinas.
— Uma empresa não desejará instalar sua nova fábrica onde há mais proibições. No futuro, as fabricantes precisarão pensar em lugares que não apresentem tais riscos — afirmou Yadav.
A reportagem procurou os dois fabricantes brasileiros de vacinas contra a Covid-19, o Instituto Butantan e o instituto Bio-Manguinhos/Fiocruz. Ambos disseram não enfrentar problemas pela falta de insumos. As duas instituições planejam construir novas fábricas, e as primeiras doses de vacinas contra a Covid-19 produzidas com ingredientes domésticos são previstas para até o fim do ano. Segundo Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos, a Fiocruz monitora a atual escassez de alguns itens, para evitar problemas em sua distribuição.