Projeto de lei ameaça iniviabilizar reprodução assistida no Brasil
Mudanças diminuiriam as chances de gravidez e aumentariam os custos da prática
Um projeto de lei sobre reprodução assistida proposto em 2003 voltou ao centro do debate nas últimas semanas após receber um parecer favorável de seu relator na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) da Câmara dos Deputados. Isso porque, se aprovado, o projeto irá inviabilizar a prática no Brasil.
A proposição busca regulamentar a reprodução assistida no país, definindo novas regras para uma área que já possui suas próprias normas.
O projeto foi proposto pelo deputado federal Lúcio Alcântara (PSDB-CE) em 2003. Desde então, foram apensados mais de 20 projetos com objetivos semelhantes. O relator na CCJ, o deputado federal Diego Garcia (PSB-PR), deu um parecer no início de julho pela constitucionalidade de quase todas as proposições, mas apenas pela aprovação de um deles, a do PL 1184/2003.
Em uma transmissão ao vivo em seu Instagram, o deputado afirmou que seu parecer foi colocado no sistema da Câmara por um erro dos seus assessores. “Eu só fiquei sabendo que esse projeto, meu relatório estava no sistema através do pessoal das redes sociais”, disse. “A minha equipe quando recebeu o parecer da consultoria, por um erro subiu direto no sistema da Câmara sem falar comigo.”
Garcia pediu à comissão que devolvesse o projeto e seus apensados. Desta forma, o parecer ainda pode ser alterado.
Entre as principais mudanças está o limite no número de embriões que poderão ser produzidos e transferidos e a proibição do congelamento dos embriões. O descumprimento das determinações pode acarretar em multa e reclusão ou detenção.
O médico ginecologista Davi Buttros, especialista em reprodução assistida, explica que ao limitar o número de embriões, o projeto limita a dois o número de óvulos a serem fertilizados, o que diminui consideravelmente as chances de gravidez. Somado a isso, a grande maioria dos procedimentos de reprodução assistida são feitos com congelamento embrionário, pois o método melhora os resultados.
São cerca de 10 óvulos coletados e destes, em média seis fertilizados, para que, ao final do procedimento, cerca de dois ou três deles possam ser transferidos para a mulher para que possam proporcionar uma chance de aproximadamente 30% do procedimento terminar com um bebe no colo dos responsáveis, afirma Buttros.
“Quanto maior o número de óvulos que eu fertilizo, maior a probabilidade de chegar no final com pelo menos um embrião viável. Então se eu restrinjo a dois o número de óvulos fertilizados, eu diminuo consistentemente as chances desse casal chegar no final com um embrião viável e a chance desse tratamento proporcionar um bebe em casa, que é o que nós queremos.”
Idealizadora do projeto Nós Tentantes, que tem como propósito desmistificar as técnicas de reprodução assistida por meio de informação e acolhimento, Karina Steiger, 46, tentou durante quatro anos diversos métodos de reprodução até conseguir dar à luz ao seu filho. Para isso, porém, ela recorreu à ovodoação (doação de óvulos) e, não à reprodução assistida.
A técnica é indicada para mulheres em idade avançada por possuírem uma menor reserva ovariana. Também é recomendado para mulheres mais jovens que passaram por uma falência ovariana precoce. Steiger, por ter mais de 40 anos, se enquadrava no primeiro caso.
“Eu não sabia que isso poderia acontecer comigo, nessa altura da vida nós temos que desconstruir toda uma história. Desde sempre nós achávamos que teríamos filhos quando parássemos o anticoncepcional e isso não acontece sempre”, diz. “É um grande luto esse diagnóstico.”
A escassez de doadoras do Brasil fez com que Steiger optasse por um tratamento na Espanha, onde há um grande banco de óvulos doados. Em sua clínica, havia uma fila de dois anos de espera. Como já havia gastado grande parte do dinheiro reservado nas tentativas anteriores, fez uma vaquinha online, e conseguiu a verba necessária para arcar com os custos da sua viagem e do tratamento.
“E assim nós conseguimos 200 pessoas que nos ajudaram através de um financiamento coletivo para que a gente conseguisse trazer o nosso sonho para a nossa realidade. Eu tenho 200 titios de alma que nos ajudaram”, conta.
Um dos apensados, o PL 6296/2002, proibiria a ovodoação no Brasil, o que tiraria a possibilidade de mulheres como Steiger de ter filhos biológicos. O parecer inicial do relator para esse projeto foi negativo, mas isso ainda pode ser revertido.
Além das mudanças citadas, o projeto original também permitiria que pessoas nascidas pelo método conheçam seus pais biológicos e proibiria a barriga solidária.
A proposição declara que a pessoa nascida por reprodução assistida poderá ter acesso, a qualquer momento, à identidade civil do doador. Para isso, deve manifestar sua vontade “livre, consciente e esclarecida” diretamente ou por meio de representante legal.
Uma medida como essa diminuiria consideravelmente a chance de encontrar doadores, principalmente doadoras de óvulos, explica Rodrigo Rosa, especialista em reprodução assistida e diretor clínico da Clínica Mater Prime, em São Paulo.
“No Brasil a lista de espera para a doação de óvulos é grande”, afirma. “A perda do anonimato faria com que a grande maioria das pessoas que hoje fazem a doação de óvulos talvez não quisessem mais doar.”
O projeto proíbe a “gestação de substituição”, conhecida como barriga solidária ou de aluguel. No Brasil, a barriga solidária é permitida, enquanto a barriga de aluguel, não. A principal diferença entre elas é que o método legalizado não pode gerar retorno financeiro para a mulher que se dispõe a carregar o bebê em seu útero.
A prática é muito utilizada pelo público LGBTQIA+, mas também permite que casais inférteis com graves restrições à gestação tenham filhos biológicos. Isso porque nessas condições, é possível realizar a fertilização in vitro do óvulo e do espermatozóide para a formação do embrião, que herdará todo o material genético do casal. Somente após essas etapas, o embrião será transferido ao útero cedido temporariamente por outra mulher.
“Muitas mulheres perderam ou nasceram sem útero, e tem mulheres que não têm condições de gestação por alguma contra indicação médica grave. Essas mulheres não poderiam ter seus filhos biológicos. E também afetariam os casais homoafetivos tanto femininos quanto masculinos, porque hoje é permitido fazer a coleta de óvulos de uma delas e transferir o embrião gerado para o útero da parceira”, afirma Rosa.