Rio de Janeiro

‘QG na Propina’ vai para Justiça comum após Crivella perder foro privilegiado

Delator relata ameaças após restaurante usado de fachada para contratos ser alvo de tiros

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O caso conhecido como “QG da Propina”, que levou à prisão o então prefeito Marcelo Crivella, será deslocado do 1º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio para a primeira instância. Por determinação da relatora da denúncia, desembargadora Rosa Helena Macedo Guita, os autos serão redistribuídos na próxima quarta-feira à 1ª Vara Criminal Especializada de Combate ao Crime Organizado. A decisão se deve ao fato de que, fora do cargo de prefeito, Crivella deixa de ter foro na segunda instância.

Em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, Crivella é acusado de comandar um esquema de liberação de pagamentos a credores da prefeitura em troca de propina. Na prática, a redistribuição do caso apressa a decisão judicial de admitir ou não a denúncia apresentada pelo Ministério Público estadual (MPRJ) contra os 15 envolvidos, tornando-a ação penal e transformando os acusados em réus. No 1º Grupo de Câmaras Criminais, seria submetida ao colegiado de desembargadores. Na primeira instância, só depende do juiz.

A denúncia, formalizada pelo MPRJ em 17 de dezembro, não encerra as investigações sobre o esquema. Uma das linhas em andamento, razão pela qual foram feitos pedidos de quebra de sigilo de telefones e computadores do ex-prefeito, apura se Crivella teve acesso prévio ao inquérito sob sigilo, a tempo de esconder provas. Outra investigação apura o atentado ao restaurante Tre Torri, alvo de 26 disparos em 6 de novembro. O estabelecimento pertenceu a um dos delatores do “QG da Propina” e foi usado para camuflar pagamentos de propina.

Delator em investigações nas esferas federal e estadual, uma delas responsável pela recente prisão de Crivella, o empresário Ricardo Siqueira Rodrigues, ex-dono do Tre Torri, contou em depoimento à Polícia Civil que teme pela segurança pessoal. Ao GLOBO, ele disse que as ameaças começaram quando as suas delações se tornaram públicas:

— As consequências não são apenas temer pela minha integridade e dos parentes. Passam pela impossibilidade de trabalhar ou de ter uma rotina que facilite a efetivação dessas ameaças.

Depois de usar uma escuta espiã para gravar uma quadrilha de auditores da Receita e de denunciar que pagou propina de R$ 1 milhão a Rafael Alves, apontado pelas autoridades como operador de Crivella, Ricardo disse que há indícios de que os tiros contra o Tre Torri (que antes se chamava Esplanada Grill), foram uma retaliação às suas revelações. O restaurante serviu de fachada, em 2018, para simular a contratação de uma das empresas de Alves como forma de transferir propina de R$ 1 milhão.

— Recebi da Polícia Civil apoio e recomendações específicas sobre esse atentado, sobre o qual destacaram a seriedade e o risco à minha vida. Não posso detalhar mais, pois a investigação segue em andamento — disse.

O empresário também recebeu ameaças por e-mail, enviados por perfis falsos, em que escreveram: “El delator, o seu futuro está na foto”, ao lado de imagens de pessoas executadas. Esses episódios, somados às intimidações relatadas por outro delator do caso envolvendo Crivella, o doleiro Sergio Mizrahy, serviram de fundamento do MPRJ para os pedidos de prisão do prefeito, de Rafael Alves e de outros integrantes do esquema. Um inquérito que investiga ameaças contra Rodrigues corre na 14ª Delegacia de Polícia .

— São retaliações feitas depois que minha colaboração foi tornada pública, não apenas como colaborador, mas como denunciante do esquema da Operação Armadeira — afirmou o empresário.

Ex-sócio do empresário Arthur César de Menezes Soares. o Rei Arthur, Ricardo foi vítima do esquema de extorsão montado por auditores fiscais da Receita Federal, em 2018, contra pessoas investigadas pela Lava-Jato. Após denunciar o golpe, ele concordou em participar de uma operação controlada em conjunto com a Polícia Federal, que desencadeou a Operação Armadeira. Na ocasião, ele usou escuta escondida enquanto negociava o valor da extorsão com funcionários da Receita numa choperia na Tijuca, Zona Norte do Rio.

Apesar das Operações Armadeira I e II, que resultaram na denúncia contra 29 servidores da Receita, a maioria auditores, a 18ª Turma de Julgamento da Receita Federal rejeitou o recurso de Ricardo contra a multa cobrada. Para ele, foi outra forma encontrada para retaliá-lo.

Em depoimento prestado ao MP, Ricardo disse que conheceu Rafael Alves durante a campanha eleitoral de 2016. Na ocasião, foi apresentado por Rei Arthur como “homem da íntima confiança e arrecadador” de Crivella, então senador licenciado e candidato à prefeitura carioca. A princípio, Alves queria uma doação de R$ 2 milhões. Em contrapartida, Ricardo teria, em caso de vitória de Crivella, benefícios junto à administração municipal que variavam desde o fornecimento de informações privilegiadas que lhes desse vantagens em concorrências, bem como direcionamento de licitações e renovações de contratos.

Crivella diz ser inocente

Nos pedidos de prisão, o MP alerta que “logicamente que a necessidade da prisão, conforme já exaustivamente demonstrado, não emerge apenas destes dois fatos isolados, os quais, contudo, servem de alerta para a real periculosidade dos integrantes da organização”. Indagado se, depois das ameaças, estaria arrependido das delações, Ricardo disse que prefere acreditar no suporte oferecido hoje pelas autoridades:

— Sigo confiante em minha decisão de colaborar e disposição de enfrentar as ameaças e denunciar essas retaliações baixas ao MPF e à Justiça.

Por intermédio dos advogados, o ex-prefeito Marcelo Crivella disse ao GLOBO que ele tem “confiança no poder Judiciário fluminense e tem certeza de sua inocência”. Para ele, compete ao Ministério Público provar o dolo específico no curso do processo criminal de ato de corrupção. “Em vários trechos das interceptações, Rafael Alves não tem seus pedidos atendidos pelo ex-prefeito”, alegam os advogados.