CORONAVÍRUS

Quem são os super-resistentes à Covid-19

Novos estudos levantam as principais características de homens e mulheres que ainda não se infectaram

Covid aumenta o risco de Alzheimer, Parkinson e AVC, diz novo estudo (Foto: Agência Brasil)

Todos nós conhecemos alguém que, de alguma forma, conseguiu evitar a Covid-19. Após a tsunami da Ômicron, a quantidade de pessoas que conseguiu essa façanha diminuiu, mas o fato é que elas ainda existem. Há alguma razão pela qual uma pessoa pode ser resistente à infecção? É justamente isso o que a ciência está tentando descobrir.

Inicialmente, as pesquisas focaram em entender quais fatores genéticos contribuíam para o agravamento da doença mesmo em pessoas sem fatores de risco. Eles descobriram que 20% dessas pessoas apresentavam mutações no genes que produzem interferon, uma substância usada pelo organismo como primeira linha de defesa contra o vírus.

Assim como a genética pode ser um determinante da gravidade da doença, ela também pode ser a chave para a resistência à infecção pelo SARS-CoV-2. E é nisso que os estudos se concentram agora: encontrar essas pessoas super imunes e identificar os genes que conferem essa proteção. A expectativa é que esse conhecimento leve ao desenvolvimento de tratamentos e vacinas que impeçam não só o agravamento da Covid-19, mas o desenvolvimento da doença em si.

“Identificar as variantes no material genético que ajudam a proteger essas pessoas também ajuda a entender o mecanismo de ação por trás dessa proteção e isso sim pode servir para um grande número de pessoas “, diz o geneticista Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genétika, em Curitiba.

Alguns estudos já apontam para as principais características dessas pessoas, que variam de ausência do receptor que permite a entrada do vírus na célula até uma poderosa resposta imunológica.

Resposta imunológica poderosa

Um estudo publicado na revista Nature mostrou que profissionais de saúde que foram altamente expostos ao coronavírus, mas que não foram infectados, tinham um sistema imune que conseguia controlar o vírus. Embora nunca tivessem tido contato com o vírus, amostras de sangue revelaram que estas pessoas já tinham células T protetoras, que reconhecem e matam as células infectadas pelo Sars-CoV-2.

Na prática, essas pessoas nunca foram de fato infectadas. Seus testes de PCR e anticorpos registram resultado negativo porque assim que o vírus entrou no corpo, ele foi prontamente eliminado por essas células, impedindo sua replicação no organismo e a instalação da doença.

A descoberta é particularmente significativa porque estas células T tendem a gerar uma imunidade que dura por anos, não meses, como os anticorpos. Além disso, elas são capazes de detectar uma parte do vírus diferente da que a maioria das vacinas atuais treina o sistema imunológico para encontrar. Esse conhecimento pode ajudar no desenvolvimento de imunizantes que têm como alvo ensinar o corpo a produzir essas células T contra diferentes partes de proteínas virais. Isso pode ajudar a proteger não só contra as cepas existentes, mas contra novas cepas e até mesmo contra patógenos inteiramente novos.

Outra pesquisa, feita pela Universidade de São Paulo com casais discordantes – quando um pega o vírus, mas não passa para o outro – descobriu que as pessoas que não adoeceram têm uma ativação mais eficiente de células de defesa conhecidas como exterminadoras naturais ou NK (do inglês natural killers), que servem como primeira barreira de defesa do nosso organismo contra uma infecção.

Outras pessoas podem ter mutações que aumentam os genes que impedem o vírus de se replicar ou que decompõem o RNA viral na célula, especialmente nas células que revestem o interior do nariz, porta de entrada da infecção, impedindo que ela se alastre no organismo.

Tipo sanguíneo

Um estudo realizado na China, no primeiro ano da pandemia, descobriu que o tipo sanguíneo A parece estar associado a um maior risco de contrair o vírus, enquanto o tipo O oferece uma pequena redução do risco. Entretanto, ainda não se sabe o que confere esse efeito protetor.

Alteração no receptor ACE2

É possível que algumas pessoas naturalmente resistentes tenham tipos raros de ACE2, receptor usado pelo vírus para entrar nas células, aos quais a proteína spike do coronavírus não pode aderir. Análises genéticas recentes revelaram que algumas pessoas possuem mutações genéticas que fazem com que seu receptor ACE2 não seja funcional portanto, têm uma redução do risco de infecção.

As diferenças na expressão de proteínas entre as pessoas são conhecidas como polimorfismos e essas descobertas são valiosas. As pessoas que têm um polimorfismo genético raro para a proteína CCR5 são imunes à infecção pelo HIV, vírus causador da Aids. Na década de 1990, pesquisadores identificaram que algumas pessoas que eram resistentes à doença, embora fossem altamente expostas ao HIV, tinham uma mutação rara que desativa o receptor CCR5 nos glóbulos brancos, impedindo a entrada do vírus na célula.

Esse conhecimento levou ao desenvolvimento de uma nova classe de medicamentos contra a Aids, que bloqueiam o vírus. Também houve o caso de duas pessoas que foram curadas da infecção após receberem transplantes de medula óssea de doadores com essa mutação no CCR5.

O infectologista Celso Granato, diretor clínico do Grupo Fleury, acredita que a explicação para pessoas com uma super imunidade contra a Covid-19 esteja justamente na ausência do receptor, que impede que a infecção se instale, ou em uma resposta imune extremamente robusta.

Esse fenômeno não é exclusivo da Covid-19 ou da Aids. Ele está presente em outras infecções virais. Todos conhecem alguém que dormiu na mesma cama com uma pessoa resfriada ou gripada e não apresentou nenhum sintoma. Por isso, Granato acredita que as descobertas sobre esses mecanismos para a Covid-19 podem ter desdobramentos no combate a outras doenças infecciosas.

Como ainda existem mais perguntas do que respostas, essas análises continuam em andamento. Uma equipe internacional de pesquisadores, incluindo uma brasileira, está conduzindo um estudo para identificar os genes que protegem esses indivíduos resistentes.

A principal dificuldade em um estudo como esse é selecionar os voluntários. A resistência à infecção pelo HIV, por exemplo, está presente em 1% da população.

“Populacionalmente, não se espera um número grande de pessoas com essa resistência “, diz Raskin.

Por isso, é preciso garantir que os voluntários são pessoas que realmente foram altamente expostas ao vírus sem proteção e mesmo assim apresentaram um teste negativo. E não que elas não se infectaram porque tomaram vacina ou porque utilizaram medidas de proteção individual, como uso de máscaras ou distanciamento social.

A expectativa está em casais discordantes ou em profissionais de saúde que não se infectaram no começo da pandemia. Já são cerca de 700 voluntários inscritos e mais de 5 mil em análise. Uma vez identificados os possíveis candidatos, os pesquisadores vão comparar os genomas desses indivíduos com os de pessoas que foram infectadas, em busca de genes associados à resistência.

Os genes selecionados serão então estudados em modelos celulares e animais para confirmar uma relação causal com a resistência e estabelecer o mecanismo de ação. As descobertas podem levar a melhores medicamentos e conselhos de saúde pública mais direcionados.