Relatório golpista de partido de Bolsonaro tem erros e lacunas; entenda
Diferentemente do que aponta o PL, limitação relatada não impede identificação e fiscalização de urnas
O relatório utilizado pelo partido do atual presidente Jair Bolsonaro, o PL, para pedir a invalidação de votos depositados em urnas de modelos anteriores a 2020 tira conclusões incorretas a partir dos dados identificados, segundo especialistas em computação.
O PL questiona a ausência do código de série das urnas no “diário de bordo” desses equipamentos mais antigos. Alega que, com isso, não é possível fiscalizá-las. Há, porém, outros dados e formas para identificar essas urnas.
Ou seja, diferentemente da afirmação do parecer, a falha apontada não impossibilita a vinculação do arquivo gerado pela urna (conhecido como log da urna) com sua urna física correspondente, argumento base do relatório do PL.
Na comparação feita por um especialista, é como se um um órgão estatal, por um erro, não tivesse em sua planilha os dados do INSS de um cidadão, mas tivesse RG e CPF —sendo possível, portanto, identificá-lo.
Além disso, o documento do PL possui lacunas ao ignorar o primeiro turno da eleição e a distribuição dos diferentes modelos de urnas dentro de um mesmo estado.
EM QUE SE BASEIA A AÇÃO DO PL?
A ação apresentada pelo PL nesta terça-feira (22) ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é baseada em relatório do Instituto Voto Legal, que não foi entregue ao tribunal, mas tem vários de seus trechos reproduzidos na ação. Uma versão parcial também circulou na última semana.
Na ação, o PL pede a invalidação de votos depositados em urnas de modelos anteriores a 2020. O partido aponta que, no log dessas urnas, na coluna onde deveria constar o código de identificação único de cada urna há um outro número que se repete.
Cada urna gera diferentes arquivos referentes a cada turno. Um deles é o log das urnas, que funciona como uma espécie de diário de bordo ou ata daquela urna. Nele são registrados todos os eventos que acontecem nela: como ter sido ligada, desligada, se ela apresenta baixa carga de bateria ou se registra uma eventual falha.
Se organizado numa planilha, a composição de um log da urna seria com várias linhas, sendo cada uma delas um desses eventos, e junto de cada evento aparecem algumas colunas —uma delas é esse código identificador da urna.
O QUE O PL AFIRMA COM BASE NISSO?
O parecer alega que, sem esse código, não seria possível vincular o arquivo gerado pela urna (o log da urna) à sua urna física correspondente, no caso das urnas de modelos anteriores a 2020.
“Como há evidências de mau funcionamento das urnas eletrônicas que geraram arquivos log com erros graves no campo do código de identificação da urna, fica comprometida a certeza dos resultados gerados nestas urnas e a garantia de integridade dos demais arquivos gerados, pelas mesmas urnas”, diz trecho do relatório que consta na representação.
Apesar de o problema apontado ter ocorrido nos logs de ambos os turnos e o parecer considerar que os erros “são graves”, o PL, que elegeu a maior bancada do Congresso no primeiro turno, pede a invalidação apenas de votos do segundo turno.
POR QUE A ALEGAÇÃO DO PL É FRÁGIL?
O erro no registro dos logs não representa um problema grave, pois há outras formas de verificar que um log pertence a determinada urna, afirma o professor de engenharia da computação Marcos Simplício, da Escola Politécnica da USP e do Larc (Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores).
“O que importa não é a ausência ou existência de bugs. É o quanto aquele bug gera um problema de fato”, diz Simplício.
Também de acordo com Bruno Albertini, que é integrante da Comissão de Transparência das Eleições do TSE e professor do departamento de Engenharia de Computação da Escola Politécnica da USP, o erro encontrado no log da urna não é crítico e não impossibilita a vinculação do log com a urna.
“Ao contrário do que afirma o relatório, há outras maneiras de vincular o log com a urna. Também a urna gerar um log com um identificador inválido não invalida o arquivo todo e não caracteriza falha de funcionamento”, diz Albertini.
QUAIS AS FORMAS DE VINCULAR O LOG DA URNA À URNA CORRESPONDENTE?
Um dos meios de fazer tal vinculação é por meio dos demais dados que constam no log da urna, como o número da zona e da seção eleitoral, além do código de carga da urna. Todos essas informações constam tanto no boletim de urna quanto no log.
Além disso, os especialistas apontam o fato de os arquivos da urna serem assinados digitalmente como uma garantia ainda mais robusta. “A urna só assina o seu log e a assinatura é suficiente para garantir com segurança criptográfica que o log veio daquela urna de fato”, diz Albertini.
Uma forma que demandaria mais trabalho, seria a verificação in loco das urnas por amostragem.
A urna armazena os dados da votação em duas mídias: uma memória interna e outra externa (tipo um pen drive). Assim, é possível verificar, por exemplo, se os logs salvos na memória interna das urnas usadas no pleito correspondem aos dados disponibilizados no site do TSE.
O QUE MAIS O PL IGNORA?
Nessas eleições foram usados seis modelos de urnas diferentes —o modelo 2020 estreou neste ano. Além dele, foram usadas urnas 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015 –esses números correspondem ao ano da licitação.
Um ponto ignorado pela representação do PL é a análise sobre como as urnas dos diferentes modelos foram distribuídas dentro de um mesmo estado ou de acordo com a quantidade de eleitores. Ela afirma apenas que as urnas de modelo 2020 foram “distribuídas aparentemente de forma proporcional e equitativa pelo país pela própria Justiça Eleitoral”.
A partir disso, conclui que “os votos válidos e auditáveis do segundo turno” atestariam resultado diferente e dariam 51,05% dos votos a Bolsonaro. O documento indica que as urnas 2020 seriam as únicas que teriam “elementos de auditoria válida e que atestam a autenticidade do resultado eleitoral com a certeza necessária – na concepção do próprio Tribunal Superior Eleitoral”.
Documento publicado por pesquisadores da USP e da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), na semana passada, mostrou, por exemplo, que as urnas novas foram mais comumente usadas em seções com mais de 400 eleitores —ao rebater afirmações infundadas feitas na live do argentino Fernando Cerimedo, que também levantou dúvidas sobre urnas dos modelos mais antigos.