Em pleno período de escalada da Covid-19, o Ministério da Saúde mobilizou a sua cúpula e alguns dos principais técnicos para ouvir ofertas improváveis de vacina e até promessa de luminária germicida.
Os encontros ocorreram principalmente de janeiro a março deste ano, na gestão do general da ativa Eduardo Pazuello, e foram registrados de forma precária nas agendas oficiais. A pasta diz não ter feito ata de nenhuma reunião.
As principais produtoras de imunizantes afirmam que não trabalham com intermediários, mas a Saúde teve ao menos 13 encontros com vendedores sem credenciais das fabricantes.
Em alguns casos, as ofertas eram de volume incompatível com a produção daquele momento.
Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que a primeira conversa desse tipo foi em 20 de janeiro, quando a Ample Develop ofereceu 100 milhões de vacinas CoronaVac em reunião com o então secretário-executivo da Saúde, coronel da reserva Elcio Franco.
Naquele período, o Instituto Butantan já tinha contrato de exclusividade com o laboratório chinês Sinovac.
A Ample prometia negociação direta com o governo chinês “com pagamento parcelado ou pagamento futuro, com até 5 anos para pagar, dependendo do quantitativo contratualizado”.
Nove meses após o começo da vacinação no Brasil
O governo federal distribuiu cerca de 94 milhões de doses da Coronavac, ou seja, número inferior ao prometido pela Ample.
Há militares, líder religioso e empresários sem tradição de negócios com a Saúde na lista de vendedores recebidos. As conversas não avançaram nem sequer para memorandos de intenções.
Para funcionários da Saúde que acompanharam as reuniões, a gestão Pazuello não adotou um filtro rígido para dispensar logo na raiz as ofertas improváveis de venda de vacinas.
Eles também dizem que militares e nomes indicados por políticos eram recebidos com maior facilidade.
Número 2 da Saúde à época, Franco conversou sobre vacinas com Henry Morita, identificado como “ex-operações especiais do Exército” na agenda de 25 de janeiro.
O registro no site da Saúde não informa o tema da reunião, mas Morita levou proposta de doses da AstraZeneca e da Covaxx, uma farmacêutica americana.
O primeiro modelo, com 400 milhões de unidades, seria fornecido pela Davati, empresa dos Estados Unidos que meses mais tarde entraria na mira da CPI. Isso porque o policial militar Luiz Dominghetti, que também dizia representar a Davati, afirmou à Folha ter recebido oferta de propina do então diretor de Logística da Saúde, Roberto Dias.
Morita não quis explicar a conversa com a Saúde. “Não espere de mim nenhum tipo de colaboração, pois como militar experimentado em combate, operador das forças especiais que fui, a regra é clara: ‘Não colaboramos com os inimigos do nosso país!'”, disse ele à Folha.
Franco centralizou as discussões do ministério sobre vacinas e outros produtos para Covid-19. Ele assinou documento em 29 de janeiro determinando que todas as ofertas fossem direcionadas ao seu gabinete, papel revogado na gestão de Marcelo Queiroga.
As conversas sobre vendas improváveis de vacina também foram feitas no momento em que o governo Bolsonaro recusava imunizantes como o da Pfizer, só contratados em 19 de março.
Além de vendedores de vacina, Franco recebeu em 27 de janeiro a Alloy Iluminação. A reunião foi intermediada pelo coronel Ricardo Mazzon, segundo documentos da Saúde. A empresa ofereceu “luminária germicida”, conforme a pauta do encontro.
A Alloy tem no seu portfólio nas redes sociais produto que promete “exterminar o COVID-19, assim como outros vírus e bactérias presentes no seu ambiente!”.
Procurada, a empresa não explicou o que ofertou ao ministério. Mazzon disse que não iria conversar com a Folha, “esquerdista e lazarenta”, e afirmou que a reunião era privada.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirma que produtos com luz UV (ultravioleta), por exemplo, até podem funcionar, inclusive contra a Covid, mas oferecem risco à saúde. A agência tem notas técnicas sobre o manejo seguro desses equipamentos.
Ainda em janeiro, a Saúde passou a receber propostas até caricatas. A Biomedic afirmava ao ministério que tinha em mãos 300 milhões de doses da AstraZeneca.
A oferta da empresa levantou suspeita na pasta, que acionou a fabricante. A AstraZeneca respondeu então que era falsa.
Mesmo assim, Franco abriu as portas para representantes da Biomedic e da empresa Adexmed juntos em 23 de fevereiro. Após o encontro, o número 2 da pasta acionou a Polícia Federal.
O alerta da AstraZeneca e a apuração aberta pela PF, porém, não fizeram a Saúde interromper as agendas por ofertas improváveis de vacinas.
Como mostrou a Folha, o general Pazuello gravou vídeo em 11 de março prometendo comprar vacinas de um grupo que representaria a empresa World Brands. A venda seria de 30 milhões de doses da CoronaVac, sem aval da fabricante ou do Butantan, e por quase o triplo do valor oferecido pelo laboratório paulista.
Em paralelo, o grupo de Dominghetti, da Senah (Secretária Nacional de Assuntos Humanitários) e do IFB (Instituto Força Brasil), teve cinco encontros com nomes da cúpula da Saúde, como Franco, de 22 de fevereiro a 16 de março.
Eles levaram ofertas como a da Davati por vacinas da Janssen e da AstraZeneca. A Davati admitiu à Folhaque nunca teve as doses na mão.
Os encontros da cúpula da Saúde com intermediários sem aval das fabricantes fizeram a CPI da Covid no Senado considerar que a pasta abriu uma espécie de mercado paralelo de imunizantes, enquanto recusava ofertas de empresas credenciadas.
A Pfizer não teve resposta para 53 emails enviados ao governo Bolsonaro, segundo o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). A empresa chegou a procurar toda a cúpula da Saúde e também membros do Planalto.
O ministério também recebeu, em 10 de fevereiro, um grupo levado por assessores do deputado federal Charlles Evangelista (PSL-MG) para negociar “carta de intenção” sobre a vacina da chinesa Sinopharm, segundo pauta da reunião.
Procurado, o gabinete do deputado não explicou a proposta nem disse para qual grupo intermediou a reunião.
Em 24 de março, um assessor de Franco recebeu a empresa Uptime para tratar da vacina da Covaxx. A firma, que já havia conversado com o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, disse que apenas acompanhou um empresário interessado na venda.
A Saúde ainda teria avisado que só faria compras “de forma direta com o fabricante e não por um intermediário”, segundo a Uptime.
Integrantes do Ministério da Saúde receberam também a empresa Huzza Alpha para tratar da venda de 40 milhões de doses da AstraZeneca. A empresa confirmou o contato, mas não disse em qual data e com quem se reuniu.
Cobrada via Lei de Acesso à informação, a Saúde não disse quem recebeu e em quais datas realizou encontros para tratar de vacinas. Repassou apenas uma lista incompleta de empresas que teriam buscado o governo.
Na relação há a BR MED, por exemplo, mas a empresa afirma que apenas se reuniu com membros da Saúde para tirar dúvidas sobre a compra de vacinas para imunizar os seus colaboradores.
A Saúde nem sequer lista todas as conversas com empresas nas agendas oficiais.
Além de omitir o encontro com a World Brands, a pasta não registrou conversas feitas em março e abril —já na gestão Queiroga— com representantes da Berna Biotech, que desenvolve a Coronal. A negociação também não avançou.
Procurados, Ministério da Saúde, Franco e Pazuello não se manifestaram sobre as reuniões.
O Instituto Força Brasil afirmou que apenas marcou reunião na Saúde para a Davati, mas não ofereceu vacinas ao governo.
Representante da Biomedic declarou que a investigação da Polícia Federal já foi arquivada. Procurada, a PF não se manifestou.
A empresa chegou a ser alvo de busca e apreensão. A Biomedic afirmou à Folha que foi vítima de “quadrilha internacional” e recomendou direcionar os questionamentos ao Ministério da Saúde.
“Eles deviam ter a informação de que as vacinas só seriam vendidas por farmacêuticas. Se eles já tinham essa informação, por que eles marcavam reuniões com as empresas?”, declararam.