CHACINA

Seis somem após PM ser chamada por fazendeiro para impedir roubo de soja em MT

Roupas cravadas de tiros, documentos pessoais, mochilas, celulares, cápsulas de balas, veículos e sangue foram vestígios encontrados na fazenda

Wanderson Soares de Lima, o Nem, um dos seis desaparecidos (Foto: José Medeiros/UOL)

Um produtor de soja de Mato Grosso chamou a Polícia Militar para evitar um roubo que ocorreria em 18 de abril de 2020 na sua propriedade. Desde aquela data, seis homens estão desaparecidos. A polícia e o Ministério Público concluíram que eles foram chacinados por um grupo de policiais militares.

Roupas, incluindo uma camiseta crivada de tiros, documentos pessoais, mochilas, um telefone celular com sinais de sangue, várias cápsulas de balas e veículos com marcas de tiros foram os vestígios encontrados na fazenda, mas os corpos ainda não foram localizados.

Estão desaparecidos Paulo Gustavo de Lima Lopes, 25, Arcelino Martins de Oliveira, 36, Francisco Barbosa de Miranda da Conceição, 26, o Naldinho, Weberson Corrêa da Silva, 31, o Seco, Francisco Wanderson Soares de Lima, 23, o Nem, e Nicolas Jordane Pereira, 26, o Nick. Eles deixaram cinco crianças —que perguntam sobre o paradeiro de seus pais e hoje têm de 4 a 15 anos de idade— e esposas, mães e companheiras. Quatro testemunhas sobreviveram.

Após extensa investigação da Polícia Civil, o Ministério Público estadual denunciou, há dois meses, três policiais militares na ativa sob a acusação de ter rendido e executado os homens e sumido com os corpos. O fazendeiro Agenor Vicente Pelissa, 51, foi acusado pela Promotoria de fraude processual. Procurado, ele não quis falar com a reportagem e se manifestou por meio de seu advogado.

Os três policiais, de acordo com o comando da PM de Mato Grosso, respondem à acusação na ativa, em “serviços administrativos”, e nenhum acusado está preso.

Após percorrer mais de 3.000 quilômetros em seis municípios no interior de Mato Grosso e ter acesso à investigação da polícia, com mais de 1.200 páginas, a reportagem do UOL localizou e falou com um sobrevivente, com 5 das 6 famílias dos desaparecidos, investigadores, promotores de Justiça e advogados e foi ao local dos desaparecimentos.

“Quer ganhar um dinheiro rápido?”

Em 9 de abril de 2020, o auxiliar de operador de máquinas Francisco Diego Costa Lima, 32, o Capivara, fez uma proposta para o trabalhador rural Francisco de Assis Fernandes dos Reis Filho, 51, o Bill, em Sinop (MT). “Quer ganhar um dinheiro rápido?”

Era o primeiro dia de férias de Bill do trabalho na fazenda Promissão, em União do Sul (MT). “Vamos roubar a fazenda Promissão e estamos precisando de você e do seu filho, já temos sete caminhões, armas, pistolas e fuzis”, teria dito Capivara ao trabalhador rural. O papel de Bill seria “abrir a porteira e deixar o pessoal entrar”. Receberia, por isso, R$ 30 mil.

Bill concordou. Dois dias depois, contudo, mudou de ideia e telefonou para alertar seu patrão, o fazendeiro Pelissa.

A sede da fazenda Promissão, no município de União do Sul, localizado a 628 km de Cuiabá (MT), se impõe na paisagem de enormes plantações de soja e milho que se estendem até o horizonte. Ela é uma das três propriedades de Pelissa, cujo patrimônio foi avaliado por ele mesmo em R$ 100 milhões. Segundo seus advogados, ele chegou anos atrás ao Nortão de Mato Grosso para cuidar de uma propriedade que o seu pai, Albino, havia adquirido. Passou a planar soja e milho e assim foi crescendo.

Um dos policiais militares ouvidos no inquérito disse que Pelissa é uma espécie de “liderança” de agricultores na região.

No começo da investigação sobre o paradeiro dos seis homens, Pelissa não informou à polícia tudo o que sabia. Após ser alvo de uma prisão temporária, em agosto, exerceu o direito de permanecer em silêncio e foi solto uma semana depois.

Contudo, em depoimento prestado em 2 de setembro de 2020 ao delegado Ferdinando Frederico Murta, da GCCO (Gerência de Combate ao Crime Organizado) da Polícia Civil de Mato Grosso, o fazendeiro disse que ficou “surpreso e assustado” com o plano do roubo relatado por Bill. Primeiro, procurou o prefeito de Santa Carmen (MT), Rodrigo Frantz (PSD), que o orientou a buscar “o comandante da PM em Santa Carmen”.

Pelissa disse ter conversado no dia 14 de abril de 2020 com o 2º sargento Evandro dos Santos e explicado “sobre as informações recebidas, pedindo apoio da polícia na segurança da sua propriedade”. Santos tem 47 anos. Ele se tornou uma peça-chave da história.

De acordo com o fazendeiro, o sargento respondeu “que poderia resolver esse assunto, ou seja, que poderia fazer a segurança de sua fazenda, mas disse que este serviço teria um custo”. O fazendeiro argumentou que Santos “não disse quanto lhe custaria o serviço, mas que ao final tratariam do preço, e assim ficou acertado”.

O fazendeiro não explicou à Polícia Civil o motivo pelo qual aceitou fazer pagamentos a PMs por um serviço público. “Embora anuísse com o pagamento exigido, o interrogado [Pelissa] reforçou que queria que tudo fosse feito de maneira correta, inclusive com o registro da ocorrência, caso conseguissem evitar o roubo.”

Na manhã do dia 18, um sábado, Bill enviou mensagens e áudios para Pelissa a fim de confirmar que o roubo ocorreria naquele dia, à noite. Pelissa repassou as informações para Santos. O sargento teria pedido o empréstimo de um carro para fazer o trabalho, e Pelissa entregou uma camionete Ranger da fazenda. Quando o policial foi receber a chave do carro de suas mãos em Sinop, o fazendeiro notou que ele estava com “roupas normais”, e não fardado.

Durante a tarde do sábado, o sojicultor disse que permaneceu em Sinop, onde mora, e falou mais “duas ou três vezes” com Santos em ligações pelo aplicativo WhatsApp. “Santos não disse ao certo o que iria fazer, sendo que a missão dele seria impedir que houvesse o roubo na fazenda, conforme o combinado”, disse Pelissa.

Até que, por volta “das 16h, 17h”, Pelissa recebeu de Santos, por telefone, “algumas fotos” que mostravam “três indivíduos presos”, segundo o fazendeiro. Em uma das imagens, havia “dois rapazes presos em um veículo, que aparentava ser uma viatura da polícia, pois havia uma grade atrás dos homens”. Em outra foto, “havia um rapaz sentado no chão e com as mãos amarradas, para trás”.

Quando a Polícia Civil mostrou a Pelissa, em setembro, a foto de Paulo Gustavo de Lima Lopes, o fazendeiro disse que “um dos rapazes que estavam sentados dentro da viatura assemelha-se ao rapaz da foto apresentada”. Lopes é um dos seis desaparecidos.

Pelissa não entregou essas fotos à polícia porque, segundo ele, estavam em um telefone celular que foi “descartado algum tempo depois por orientação dos seus advogados” na época (esses defensores foram substituídos).

Após ter visto as fotos, o fazendeiro “não conseguiu mais contato” com Santos. Foi dormir por volta das 23h. Cinco horas depois, recebeu uma chamada do sargento, por WhatsApp. “Ele disse para o interrogando [Pelissa] acionar a Polícia Militar em União do Sul e ir à fazenda fazer uma limpeza lá sem dar maiores detalhes.”

Na manhã do domingo, dia 19, Pelissa acionou a PM de União do Sul. Uma equipe de policiais militares seguiu para a fazenda e encontrou diversos indícios de uma chacina.

Pelissa também foi à propriedade. Viu um caminhão com vários sinais de tiros e “muitas cápsulas espalhadas pelo chão”. O portão de entrada estava caído. Havia um Fiat Strada e uma moto estacionados —assim como o caminhão, eles não pertenciam a ninguém da fazenda. A cerca de 5 km da entrada da propriedade, havia um Gol escuro parado numa estradinha.

A equipe de PMs recolheu diversos objetos da cena do crime. Nada havia passado antes pela perícia da Polícia Civil. Os PMs ficaram “várias horas andando pela fazenda” e catando coisas, como “dezenas de cápsulas de bala”. Os veículos foram retirados da frente da propriedade. O fazendeiro disse que “estranhou a movimentação, porém, como eram policiais, pensou que soubessem o que estavam fazendo”.

‘Houve uma execução sumária’, conclui delegado

Enquanto isso, em três cidades diferentes —Sinop, Sorriso e Cuiabá—, familiares de seis homens começaram a desconfiar de que algo muito errado havia ocorrido. Só na segunda-feira, dia 20, Capivara apareceu, a pé, em Sinop, e procurou a família de um dos desaparecidos, Nem, seu sobrinho.

Ele contou que havia levado Nem para “um corre” na fazenda Promissão. Quando chegaram, contudo, “fomos recebidos a tiro e eu consegui cair no meio do milharal e fugir”, disse aos seus parentes, conforme depois declararam à polícia.

No seu depoimento, Capivara disse ter visto “dois corpos no chão, uma viatura da Polícia Militar e outras duas camionetes escuras entrando e saindo do local”.

Ele viu seu sobrinho pela última vez quando o deixou ao lado dos amigos Nick e Seco no portão da fazenda, na noite do dia 18. Capivara pegou sua moto, retornou pela estrada e orientou a chegada de três caminhoneiros que estavam perdidos e iriam fazer o transporte da soja roubada —os caminhoneiros disseram que não sabiam que haveria um roubo e acharam que era um frete normal.

Logo que Capivara chegou de volta à fazenda, porém, os tiros começaram. “Eram pelo menos quatro indivíduos atirando em sua direção.” Ele afirmou não ter condições de identificar os atiradores, por ser um local escuro. Fugiu pelo mato e cruzou várias fazendas a pé. Quando chegou a Sinop, estava “com arranhões pelo corpo e os pés machucados”.

Ao final da investigação, a Polícia Civil confirmou, por meio de depoimentos e perícias, a versão de Capivara de que muitos tiros foram disparados na propriedade e pessoas foram assassinadas. “O que ficou claro, na investigação, é que houve a execução sumária daqueles indivíduos. Ali na fazenda houve uma ação de extermínio. Tenho a convicção de que foram todos mortos”, disse ao UOL o delegado Ferdinando Frederico Murta, da GCCO, responsável pela investigação ao lado dos delegados Juliana Chiquito Palhares e Flávio Henrique Stringueta.

“Os homens estão desaparecidos até hoje. Há telefones deles com marcas de tiros. Os familiares reconheceram os veículos recuperados, as roupas, pertences e alguns documentos pessoais. Chegamos à conclusão de que foram mesmo todos mortos”, disse o promotor de Justiça Eduardo Zaque, da comarca de Claudia, um dos cinco membros do MP que atuam no caso.

A princípio o caso tramitou em Cláudia. Ao perceber a complexidade da investigação, a Polícia Civil decidiu repassá-la para a Gerência de Combate ao Crime Organizado, em Cuiabá, que já havia investigado outros assaltos a propriedades na região.

Além do sargento Santos, o MP denunciou os soldados João Paulo Marçal de Assunção e Roberto Carlos Cesaro, então lotados no Núcleo da PM de Santa Carmen.