Sem comida, moradores do Rio recorrem a restos de ossos e carne rejeitados por supermercados
Pessoas em extrema pobreza dependem de restos descartados para sobreviver no RJ
Homens e mulheres em situação de absoluta pobreza formam uma fila na Glória, Zona Sul do Rio de Janeiro, uma vez por semana, para garimpar restos de ossos e de carne descartados pelos supermercados da cidade. Os restos são doados pelo motorista e pelo ajudante da empresa que atende estes supermercados. O encontro acontece toda terça-feira, por volta das 10h.
Uma das pessoas que se amontoam entre os restos é Denise da Silva, de 51 anos. Denise mora em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e de trem, percorre quase 33km até a Central. Como não tem dinheiro para pagar outra passagem, ela percorre outros três quilômetros a pé até a Glória. Denise é mãe de cinco e avó de 12. Ficou viúva recentemente e depende de ossos e pelancas para alimentar a família. “Não vejo um pedaço de carne há muito tempo, desde que a pandemia começou. Esse osso é a nossa mistura. Levamos para casa e fazemos para os meninos comerem. Sou muito grata por ter isso aqui”, conta.
Denise geralmente chega ao ponto de distribuição acompanhada da irmã, a desempregada Sheila Fernandes da Silva, de 43 anos. “Você não sabe a alegria quando o caminhão chega aqui. É a certeza que teremos algo diferente para dois dias”.
Aquelas doações também o que salvam a desempregada Vanessa Avelino de Souza, que tem 48 anos e mora nas ruas do Rio de Janeiro. “A gente limpa e separa o resto de carne. Com o osso, fazemos sopa, colocamos no arroz, no feijão… Depois de fritar, guardamos a gordura e usamos para fazer a comida”, relata Vanessa, que tem cinco filhos, mas não convive com eles. ” Não tenho como cuidar deles. Por isso, eles são criados pela minha mãe. Não temos quase nada. O que temos é de doações. Lá, pelo menos, eles têm um pouco de dignidade”.
Um estudo da Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Alimentar e Nutricional revelou que mais de 116,8 milhões de pessoas vivem sem acesso a alimentos de forma plena e permanente. Dessas, 19,1 milhões (9% da população) passam fome e vivem um “quadro de insegurança alimentar grave”. O levantamento mostra um aumento de 54% no número de pessoas que sofrem com a escassez de alimentos, em comparação com 2018.
A capixaba Karlinca de Jesus, de 48 anos, também visita o Centro, a exemplo de Vanessa, Denise, Sheila e outras pessoas. Ela se mudou para o Rio de Janeiro em 2018, em busca de um futuro melhor, e hoje vive com o companheiro na rua, no entorno do Monumento aos Pracinhas, no Aterro, perto de onde o caminhão da pelanca estaciona. “Pego aqui há uns seis meses às terças. É uma ajuda e tanto! Pego, levo e salgo. Durante a semana, vou fazendo para a gente. Na rua é tudo muito difícil. Várias vezes, a gente passa fome”.
José Divino Santos, 63 anos, afirma que nos últimos meses aumentou o número de pessoas que pedem ossos de restos de sebo. “Tem dias que chego aqui e tenho vontade de chorar. Um país tão rico não pode estar assim. É muito triste as pessoas passarem por essa situação. O meu coração dói. Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploraram por um pouco de ossada para fazer comida. Duas ou três pessoas em situação de rua passavam aqui e levavam. Hoje, tem dia que tem umas 15 pessoas”.
Divino, que nasceu no interior de Minas Gerais, tem 63 anos e é motorista de caminhão, diz que os restos seguem para uma fábrica no bairro Santa Rita, em Nova Iguaçu. Lá, parte do material vira ração para animais e a outra — a gordura — é utilizada para fazer sabão em barra. “Às vezes, está meio estragado, a gente fala, mas as pessoas querem assim mesmo”, conta sem conter as lágrimas.