Senado adota pauta negacionista e até escala médium para debater guerra
Maior parte das iniciativas partiu do senador bolsonarista Eduardo Girão
Após aliados do presidente Jair Bolsonaro (PL) ganharem fama na defesa do negacionismo durante a CPI da pandemia, alguns parlamentares passaram a atuar para impulsionar no Senado discussões de temas pseudocientíficos.
Foram realizadas audiências para debater novamente o chamado kit Covid e a terapia de constelação familiar. Até um médium foi chamado para falar sobre o papel do Brasil na mediação de guerras.
A agenda anticientífica provocou reclamações nos bastidores por parte de outros senadores, que se dizem incomodados com a casa legislativa dedicar tempo a esse tipo de discussão.
O Senado se tornou no ano passado um dos centros dos debates sobre o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, com a instalação da CPI da Covid.
Por outro lado, a CPI também foi palanque para que senadores alinhados a Bolsonaro defendessem a hidroxicloroquina, a ivermectina e outros medicamentos ineficazes para o tratamento da Covid.
Com o fim da CPI, alguns desses parlamentares decidiram ampliar o escopo de debates e levaram para o Senado assuntos questionados por especialistas.
Grande parte das iniciativas partiu do bolsonarista Eduardo Girão (Podemos-CE). Na CPI, ele se notabilizou por defender teses bolsonaristas relacionadas à Covid, entre elas o uso da cloroquina.
No calor do conflito entre Rússia e Ucrânia, Girão apresentou um requerimento e presidiu uma sessão para discutir o papel do Brasil na mediação de conflitos e construção de uma cultura de paz.
Participaram diplomatas de alto escalão do Ministério das Relações Exteriores e especialistas de renomadas universidades. Mas os parlamentares também chamaram para discutir o tema um médium espírita.
Geraldo Lemos Neto, diretor da Casa Chico Xavier em Pedro Leopoldo (MG), usou sua participação para falar sobre a biografia, os feitos e os ensinamentos do famoso médium brasileiro.
Especificamente sobre o papel do Brasil como mediador de guerras, Lemos Neto citou uma declaração feita por Chico Xavier, de que o Brasil precisaria receber muitos imigrantes fugindo de conflitos.
Girão defendeu o convite para o médium da Casa Chico Xavier e disse que ele deu excelente contribuição ao debate.
“Não podemos jamais esquecer que o pacifista brasileiro Francisco Cândido Xavier foi indicado em 1981 e em 1982 para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz, com o respaldo de milhões de brasileiros e 29 instituições de outros países”, afirmou.
Seja por iniciativa de Girão ou de outros parlamentares, o Senado também realizou audiências para manter viva a questão do kit Covid e para debater uma controversa terapia chamada constelação familiar.
Cientistas criticam a realização desse tipo de evento, mesmo quando há igualdade numérica de debatedores entre os que são favoráveis e os que são contrários a uma determinada prática. Isso porque se cria a falsa percepção de que existe uma polêmica real em curso no universo científico.
“O problema desses debates sobre pseudociências, sobre aquilo em que já existe um consenso no universo científico, é que, quando você leva o debate em face de um público não especialista, você cria uma falsa equivalência”, afirma à Folha a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do IQC (Instituto Questão de Ciência).
“Você cria uma imagem como se houvesse uma controvérsia na ciência sobre esse assunto, mas não tem essa controvérsia”, completa.
A constelação familiar é uma terapia que procura identificar a origem de problemas pessoais em questões familiares não resolvidas.
Nesse sentido, a pessoa que se submete à prática pode descobrir que está repetindo o mesmo erro de um antepassado, por exemplo. Em entrevista à Folha no ano passado, o psicólogo cognitivo Bruno Farias se referiu à constelação familiar como pseudociência e pseudoterapia.
A constelação familiar não é reconhecida pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia) e pelo CFM (Conselho Federal de Medicina). Ela pode ser aplicada como terapia complementar no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde) e é utilizada no sistema judicial de alguns estados para tentar solucionar conflitos familiares e casos de violência doméstica.
Durante a audiência no Senado, a alemã Sophie Hellinger, esposa do criador da terapia, Bert Hellinger, resumiu a prática.
“Se o pertencimento e a hierarquia [na família] não forem respeitados, isso pode, muitas vezes, levar a sérios problemas psicológicos e também físicos para alguns membros da família, mesmo gerações mais tarde, podendo levar até a morte”, disse.
Cientistas e defensores de direitos humanos apontam que a prática perpetua preconceitos, particularmente machismo e homofobia, podendo deixar pacientes em risco.
“É uma prática inventada por um ex-padre alemão, que tem um viés essencialmente patriarcal e conservador. Defende que cada um tem um lugar dentro da família, cada um tem o seu papel e todos subservientes ao homem, ao pai. Todos os problemas seriam porque alguém não está exercendo a sua função”, afirma Natalia Pasternak.
A também pesquisadora Gabriela Bailas, que participou da sessão, apontou que a constelação familiar apresenta riscos para as mulheres e citou um exemplo contido na obra de Hellinger sobre abuso sexual doméstico. A explicação para esse exemplo, segundo os adeptos da terapia, estaria na falta de cumprimento dos papéis familiares.
“Quando um pai ou um padrasto abusa sexualmente de uma criança, a criança tem que dizer: ‘Mamãe, por você eu faço isso; papai, pela mamãe eu faço isso’. Ou seja, existe um desequilíbrio no sistema, e essa criança é estuprada pelo seu pai, porque a sua mãe não deu amor o suficiente. Isso se repete na obra de Bert Hellinger”, afirmou
O senador Girão afirmou que as críticas à constelação familiar “são preconceituosas” e não têm consistência e procedência.
Acrescentou que 16 estados brasileiros já usam o método em processos em varas de família e que o Ministério da Saúde incluiu a prática no SUS. Disse ainda que a sessão no Senado foi balanceada em número de debatedores e na divisão dos tempos de fala.
Ele afirmou também respeitar a crítica de outros senadores sobre os assuntos das audiências, mas destacou que não vai deixar de propor que o Senado “discuta temas que possam contribuir para a melhoria da vida da população sem qualquer tipo de preconceito ou discriminação”.