Servidor negro compra sapato, é acusado de roubo e agredido em shopping em MT
O servidor público federal negro Paulo Arifa, de 38 anos, registrou um boletim de ocorrência…
O servidor público federal negro Paulo Arifa, de 38 anos, registrou um boletim de ocorrência por injúria, calúnia e lesão corporal após ter sido acusado de roubo por funcionários da Studio Z, uma loja de calçados localizada no Shopping Pantanal, em Cuiabá.
O episódio aconteceu há pouco menos de uma semana, na quarta-feira (10), quando Paulo, que atua na Secretaria de Patrimônio da União, foi ao shopping comprar um sapato e roupas para uma reunião extraordinária, da qual foi informado poucos instantes antes de seu início.
Naquele dia, Paulo, que está trabalhando de forma remota, deixou os filhos de três e cinco anos na casa da babá por volta das 13h.
“Estava de chinelo, camiseta e bermuda, porque Cuiabá costuma fazer calor, iria em casa para colocar uma roupa adequada mas, neste momento, me ligaram. Então decidi passar no shopping que fica em frente ao meu trabalho para comprar um sapato e uma calça”, lembra.
Quando chegou no Shopping Pantanal, o servidor foi até a loja da Studio Z, onde comprou um sapato no valor de R$ 79,99. Paulo conta que fez o pagamento em dinheiro e recebeu R$ 20 de troco.
Assim que pagou pelo produto, ele já calçou o sapato e foi em direção a uma loja de roupas, onde comprou uma calça. Paulo também já se vestiu com as roupas novas e saía do provador quando foi abordado por um segurança.
“Escutei a vendedora [da Studio Z] falando ‘ele pegou o sapato’, ainda questionei sobre o que ela estava falando e ela repetiu que eu havia roubado o calçado. Nesse momento o segurança me abordou e pediu a nota fiscal”, conta.
Paulo lembra que ficou muito nervoso e não conseguiu encontrar o comprovante de pagamento de forma rápida. Ele tentou explicar que pagou pelo sapato em dinheiro e chegou a mostrar os R$ 20 que havia recebido de troco na loja.
“A vendedora continuou me acusando, falando que tinha pegado o troco na loja de roupas, que ela tinha visto. Mas eu tinha feito o pagamento no débito e não em dinheiro. Uma situação humilhante. Neste momento já tinha um grupo de cinco a oito seguranças me cercando”, diz.
O servidor tentou sair da situação, explicando que tinha uma reunião importante, mas ouviu dos seguranças que a Polícia Militar seria acionada e ele precisaria ser encaminhado para a Central de Flagrantes. Paulo conta que a justificativa não adiantou para acalmar os seguranças e continuou cercado por eles, relatando que chegou a ser empurrado.
“Nessa confusão toda, eles me empurraram e eu acabei pisando em falso. Tentei sair dali a todo momento, um deles [dos seguranças] tentou pegar meu celular, que era, na verdade, a única ‘arma’ que tinha para me defender: filmar a situação e as agressões”, conta.
O servidor diz ainda que se viu em uma situação de “perigo real” após se lembrar de outros casos em que pessoas negras foram agredidas ou mortas em estabelecimentos.
“Lembrei da situação do João Alberto [espancado e asfixiado por seguranças de uma loja da rede Carrefour no ano passado], pensei que eles realmente poderiam fazer pior. Já fui abordado outras vezes, pessoas negras passam por esse tipo de situação no Brasil, mas não dessa forma. Fui julgado e condenado naquele momento”, desabafa.
Danos psicológicos
Para conseguir sair da situação, Paulo precisou ligar para a coordenadora de seu trabalho, que foi até o Shopping Pantanal para ajudá-lo. Depois da reunião, o servidor acabou encontrando a nota fiscal no bolso da bermuda que usava antes de compras as roupas novas.
“Saí do shopping correndo, atravessei a rua e fui para a reunião, deixei meu carro no estacionamento. Depois voltei para pegar, pedi para minha coordenadora ir comigo para mostrar a nota fiscal na direção do shopping e explicar que não havia roubado o calçado”, lembra.
No entanto, Paulo conta que ouviu da administração que a postura dos seguranças cumpriu o “procedimento operacional padrão”.
“Esse maldito procedimento operacional padrão parece que está no DNA de uma pessoa que nasce com determinada cor de pele”, diz o servidor.
Ele registrou boletim de ocorrência no dia seguinte ao caso. Um exame também constatou que ele sofreu lesão no tornozelo durante a abordagem.
Agora, ele pretende ingressar com uma ação civil pública.
“Foi muito constrangedor e estou traumatizado. Por conta do trabalho já passei por situações perigosas, capotamento, animais selvagens e garimpeiros, mas nunca senti tanto medo. Minha esposa disse para eu procurar um psicólogo, porque não estou comendo nem dormindo direito”, detalha.
Paulo destaca também que o racismo no Brasil vai muito além de problemas jurídicos na responsabilização deste tipo de crime.
“É cultural, nesse tipo de abordagem você já foi julgado e condenado. O Brasil é baseado na escravidão. Tenho muito orgulho da minha cor. Durante a adolescência, meu corpo foi tocado por policiais várias vezes. Quando via uma blitz, já sabia como deveria agir”.
Por meio de nota, o Pantanal Shopping informou que discriminação ou violência não fazem parte das diretrizes da empresa, informando ainda que os seguranças envolvidos foram afastados e a loja foi notificada.
O UOL tentou localizar a assessoria de imprensa da Studio Z, mas não obteve retorno.
O Pantanal Shopping afirmou que vai reforçar o treinamento da equipe para “garantir que casos como este não voltem a se repetir”.