Sete das dez imagens mais compartilhadas no WhatsApp são falsas
E 60% delas relacionavam a pandemia a uma conspiração chinesa; leia levantamento inédito das cem imagens mais populares em 522 grupos
A foto de uma reunião do governador de São Paulo, João Doria, com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, ocorrida no dia 29 de maio de 2019, foi a imagem mais compartilhada em centenas de grupos de WhatsApp entre março e junho de 2020, durante o avanço da pandemia de Covid-19 no Brasil.
A foto foi enviada nada menos que 874 vezes a 152 grupos diferentes, sendo 80% delas entre os dias 3 e 5 de abril. Ela vinha acompanhada de diferentes versões sobre os acontecimentos – e nenhuma delas era verdadeira.
Um texto dizia que o governador havia firmado contrato com uma farmacêutica chinesa para a produção de vacina contra o coronavírus ainda em 2019, ou seja, de alguma maneira o governador teria informações “privilegiadas” sobre a pandemia mesmo antes de ela ter acontecido; a foto seria prova desse acordo. A informação é falsa, conforme checado pelo G1.
Outra mensagem, também falsa, dizia que o homem ao lado de João Doria seria um “chinês preso com carga roubada de material para tratamento de Covid-19”. A imagem sugeria uma ligação entre o governador e um roubo de máscaras e testes de Covid do aeroporto de Guarulhos, feito, segundo a polícia, por uma quadrilha de chineses. A corrente diz que o homem do lado de Doria faria parte dessa quadrilha, quando na verdade se trata do embaixador da China no Brasil.
Ao longo da evolução da epidemia, o governador paulista tornou-se um dos maiores opositores do governo Bolsonaro; os dois chegaram a bater boca durante uma reunião virtual entre governadores e o presidente. Não por acaso, Doria foi alvo de mensagens falsas ligando-o a uma conspiração chinesa relacionada ao vírus. Como a Agência Pública já demonstrou, influenciadores bolsonaristas, incluindo os filhos do presidente, usando até mesmo robôs, espalharam em março uma hashtag que ligava o vírus ao governo chinês.
Outros políticos que antagonizaram com o presidente foram alvo da mesma fake news. Os governadores do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), e do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que adotaram medidas de isolamento social criticadas por Jair Bolsonaro como prejudiciais à economia, também tiveram suas fotos ao lado do embaixador chinês circulando com o mesmo boato. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados que impôs diversas derrotas políticas ao governo, estampou algumas fotos com a mesma história, assim como o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que chegou a pedir a renúncia de Jair Bolsonaro em meio à crise.
Essas fotos fora de contexto, espalhando a mesma fake news, foram cinco das dez imagens mais compartilhadas no período, segundo levantamento da Pública.
A reportagem analisou as cem imagens mais compartilhadas entre 1o de março de 2020 e 30 de junho de 2020 na base de grupos de WhatsApp do projeto Eleições sem Fake, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A amostra inclui 522 grupos públicos de WhatsApp relacionados à política – de diferentes espectros – e mais de 18 mil usuários ativos.
“É a maior coleta de grupos públicos”, explica Fabrício Benevenuto, pesquisador responsável pelo projeto. Embora a amostra seja robusta, não é possível saber quanto ela representa do total, por causa da falta de transparência da plataforma. “O WhatsApp não libera números, nem de quantos grupos públicos existem, ou números de usuários, quantas mensagens acontecem”, diz ele.
Benevenuto afirma que “há uma máquina de desinformação em operação dentro do WhatsApp”. Mensagens com “fator bombástico, revoltante, algo divisível, repugnante ou que colocam o outro como inimigo têm um poder de espalhamento muito mais forte”. Por isso, ele explica, as notícias falsas são mais compartilhadas que as verdadeiras.
A reportagem concluiu que das dez imagens mais compartilhadas no período analisado, sete continham informações falsas ou foram usadas para disseminar desinformação.
Entre elas, apenas uma não tinha a ver com a China. A segunda imagem mais compartilhada foi a de um atestado de óbito constando “coronavírus” como causa de morte de um homem no dia 23 de março de 2020. A foto do documento foi enviada 757 vezes a 189 grupos diferentes, e 94% desses envios foram feitos nos dias 28 e 29 de março.
A imagem foi utilizada em diferentes redes sociais para desacreditar o número oficial de vítimas por Covid-19, que até então tinha tirado 114 vidas no Brasil (hoje já são mais de 87 mil mortos). Textos e áudios compartilhados junto com o atestado de óbito afirmavam que se tratava de uma morte causada por explosão de pneu, ou outras fatalidades, e que teria sido registrada como morte por coronavírus por decisão dos governos municipais ou estaduais para inflar os números.
Políticos e influenciadores também compartilharam a história em suas redes sociais. “Neste link, a verdadeira história da morte do borracheiro que não morreu de coronavírus mas cujo atestado de óbito afirma que sim”, publicou a deputada federal governista Bia Kicis (PSL-DF). “A quem interessa que um hospital coloque uma causa da morte falsa?”, insinuou a parlamentar investigada nos inquéritos do Supremo Tribunal Federal (STF) que apuram a disseminação de notícias falsas e a organização de atos antidemocráticos.
De fato, o documento foi preenchido com erro, conforme esclareceu a Secretaria Estadual de Pernambuco, mas a morte jamais foi contabilizada nos números oficiais de mortes por coronavírus no estado. O homem faleceu de influenza A, e não de acidente. Trata-se de uma história deturpada, conforme checou o Uol no dia 29 de março. Depois disso, a imagem ainda circulou pelo menos outras 41 vezes pelos grupos de WhatsApp.
“A mentira continua acontecendo, independente de se foi checado. Não acabou o problema”, diz Benevenuto.
Atenuando a gravidade da crise
Entre as cem imagens analisadas, 40 trataram da crise da Covid-19 e foram responsáveis por 56,5% dos compartilhamentos. Destas, 14 eram imagens que tentavam negar a gravidade da pandemia no Brasil, insinuando que a taxa de mortes estava inflada ou comemorando o número de curados, sem contextualizar a curva de crescimento da doença.
Juntas, as imagens que disseminaram esse discurso foram encaminhadas 3.345 vezes – 20% do total de compartilhamentos.
A disseminação no WhatsApp de conteúdos que tentam negar a gravidade da pandemia de Covid-19 também foi monitorada em uma parceira do Eleições sem Fake com o Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP). Os grupos analisaram áudios que circularam entre os dias 24 e 28 de março e constataram que, entre os 20 áudios com maior circulação, cinco negavam a gravidade da pandemia.
O sexto áudio mais compartilhado trata do mesmo caso do borracheiro que teria sido contabilizado como vítima de coronavírus. Outro áudio, o quarto mais compartilhado no período, nega o número de mortes e diz que sobram caixões na cidade de Lindoeste (PR), já que está morrendo menos gente do que antes – o que não é verdade.
As conversas em grupos de WhatsApp durante a pandemia falaram também muito sobre as manifestações ocorridas entre março e junho pelo país. Das cem imagens mais compartilhadas, 29 tinham como tema principal algumas dessas manifestações – desde os panelaços, passando pelas carreatas pela reabertura do comércio em cidades pequenas, até os atos antidemocráticos em Brasília, investigados pelo STF.
Uma corrente de imagens chamava para manifestações em pelo menos 14 cidades do Brasil nos dias 31 de maio e 7 de junho. Nessas datas, apoiadores do presidente saíram às ruas contra inquéritos no STF que investigavam a disseminação de notícias falsas e pedindo por intervenção militar. “Apoio ao presidente Bolsonaro e às FFAA, Fora Congresso Nacional e STF, Diga não ao comunismo” eram as pautas dos atos listadas nas imagens mais compartilhadas nos grupos.
Ataques e críticas ao STF e ao Congresso foram tema de 12 das cem imagens mais populares. Entre elas, algumas disseminavam informações falsas a respeito de ministros. “Contra fotos (ops) fatos, não há argumentos… Juiz Marco Aurélio e seu amigo Fidel. #foramarcoaurelio #forastf”, dizia uma corrente acompanhada de foto de Fidel Castro com um jovem com traços parecidos aos do ministro Marco Aurélio. Na verdade, se trata do jornalista Ricardo Noblat, conforme checado pelo Fato ou Fake.
Apesar de falsa, a imagem foi encaminhada 138 vezes a 87 grupos de WhatsApp entre março e junho de 2020.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), que rompeu com o presidente em 25 de março, foi identificado falsamente como o agressor de um idoso em uma foto compartilhada em grupos de WhatsApp. A imagem foi compartilhada cem vezes em 54 grupos.
Outros políticos da oposição e de esquerda foram atacados em 12 das cem imagens mais compartilhadas pelo WhatsApp, que chegaram juntas a um total de 1.846 compartilhamentos.
Uma das mais difundidas, com um total de 154 compartilhamentos em 84 grupos, é um print de um suposto grupo chamado “RESISTÊNCIA PARÁ”, em que participantes com nomes como Psol Uepa ou #LulaLivre bolam um plano para infectar outras pessoas e “mostrar que Bolsonaro é genocida”. A imagem foi checada pelo Boatos.org e desmentida pelo Psol no estado.
Jornalistas e veículos de imprensa também foram alvos de ataques em quatro das cem imagens mais populares.
A 12ª imagem mais compartilhada no WhatsApp entre 1o de março e 30 de junho de 2020 trazia uma manchete do site bolsonarista Senso Incomum. “Esperança: Quatro pacientes foram curados em SP com o uso da hidroxicloroquina”, dizia o texto compartilhado 290 vezes para 95 grupos distintos.
A hidroxicloroquina, ou cloroquina, também foi apresentada como possível cura para o coronavírus em outras duas das cem imagens mais compartilhadas no período, mesmo sem haver nenhuma comprovação científica da eficácia do medicamento para o tratamento da doença.
Também estiveram entre as cem mais compartilhadas imagens que visavam defender o presidente Bolsonaro (3) e a reabertura da economia (6). “Fique em casa e assista de camarote seu país ruir”, dizia uma das mais compartilhadas, que anunciava a falência da empresa de transporte Itapemirim. Como revelado pelo Fato ou Fake, a empresa não faliu e está em processo de recuperação judicial desde 2016. A imagem chegou a 95 compartilhamentos em 67 grupos, envolvendo 80 usuários.
Grupos de WhatsApp seguem ações do presidente
Os 522 grupos de WhatsApp analisados tiveram mais atividade em dias nos quais a Presidência da República também marcou presença nas redes sociais. O dia mais ativo foi 28 de março – logo após a divulgação da campanha “O Brasil não Pode Parar”, pela Secretaria de Comunicação do governo.
Um segundo pico ocorreu entre 3 e 5 de abril, com o compartilhamento das imagens que associam falsamente governadores e políticos da oposição a suposto criminoso chinês. No dia 2 de abril, o presidente havia compartilhado um vídeo no qual uma apoiadora sua critica os governadores pelas medidas de isolamento adotadas no combate ao coronavírus.
Já o dia menos ativo – 23 de abril – ocorreu na véspera da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, apontado como o ministro mais popular do governo. “Moro já é comunista na Austrália”, ironizava a imagem mais compartilhada na data, encaminhada apenas cinco vezes entre os grupos analisados.
Apesar de o dia menos ativo ter ocorrido em abril, esse foi o mês de maior atividade nos grupos de WhatsApp. Foi também nesse período que manifestações a favor do governo, contra as medidas de isolamento social e contra as instituições democráticas começaram a se espalhar pelo país. Bolsonaro esteve presente nos dias 19 de abril, 3 de maio e 31 de maio.
Já o mês de menor atividade nos grupos foi junho, quando aliados do governo começaram a ser investigados pelo STF nos inquéritos que apuram a disseminação de notícias falsas e organização de atos antidemocráticos. Ainda em 27 de maio, políticos e influenciadores ligados a Bolsonaro foram alvos de operação da Polícia Federal. Em 16 de junho, outra operação mirou empresários governistas suspeitos de financiar manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF.