“Só tenho o que comer quando acho no lixo”, diz catadora
Famílias vivem em situação de extrema pobreza, sem ter o que comer
Na montanha de lixo vindo da Ceasa, em Irajá, Ana Lúcia dos Santos, de 47 anos, mergulha metade do corpo em busca de tomates que possam ser aproveitados. Claudia Brito Monsores, de 51 anos, não tem medo de escalar o monte de restos atrás do sustento dela, da filha, da neta e do marido.
Cristina Maia Antonio, de 62, e Denise Anacleto da Silva, de 51, não esmorecem para carregar as caixas pesadas com maracujás, melancias e limões que vão garantir algum alimento em casa.
Jacira da Conceição dos Santos, de 59, tampouco: ela pensa no que vai levar à panela, no fogão a lenha improvisado no quintal de casa — naquela semana (como em muitas nos últimos anos), o gás já tinha acabado e não havia dinheiro para outro botijão.
Uma ajudando a outra, as cinco integram uma espécie de rede de solidariedade formada basicamente por mulheres que, ao catarem alimentos em meio ao material descartado da Central de Abastecimento, tentam encontrar juntas também um fio de esperança para se manter de pé, e com uma vida melhor.
Como mostra pesquisa divulgada nesta quinta-feira, no Encontro Nacional Contra a Fome, organizado pela Ação da Cidadania, elas são o lado mais maltratado pela crise que tem tirado comida da mesa de milhões de brasileiros.
Com água e apenas uns pedaços de melancia no estômago, enquanto espera os caminhões de lixo chegarem, Jacira, quase 60 anos, chega a chorar ao lembrar das dificuldades até para comer. Para ser consolada, ganha um abraço coletivo das amigas. Denise seca as lágrimas dos olhos da vizinha de comunidade, a favela Para Pedro, ali mesmo em Irajá. Cada uma vai descortinando as histórias que as levaram até ali.
Denise, por exemplo, tinha deixado a catação quando conseguiu um trabalho com carteira assinada como empregada doméstica, na Vila da Penha, também na Zona Norte do Rio. Mas, em maio de 2021, foi mandada embora pelo patrão advogado, que justificou também estar sofrendo a pressão financeira da pandemia. Voltou ao lixo, enquanto sonha em poder ir ao supermercado e encher o carrinho com o que quiser.
— Que alegria seria ir ao mercado, com meu dinheiro, fruto do meu trabalho, para escolher o que vou comer, e não esperar alguém jogar fora para me alimentar — diz Denise, sem esconder o tamanho das incertezas com o armário e a geladeira abastecidos apenas por produtos que sobram da Ceasa. — Farinha? Toda casa de pobre tinha farinha para misturar com água. Na minha não tem mais. Outro dia, aqui no lixo, um cachorro saiu com um pacote de salsicha na boca. Eu saí correndo atrás dele para pegar.
Cristina, por sua vez, conta algumas técnicas para checar se o alimento catado no lixo pode ser consumido:
— Quando cai carne dos caminhões, o que é muito raro, a gente observa a coloração dela e o cheiro. O ovo, põe num pote de água. Se afundar, está bom. Para cada alimento, temos um processo.
Histórias assim revelam o que estudos vêm apontando. Divulgado ontem, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede PENSSAN, mostra que 38,58% das famílias chefiadas por mulheres enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave. O percentual é menor, ainda que dramático, naquelas em que o homem é o responsável por custear as despesas da casa: 28,2%.
A “Agenda Rio 2030 — propostas por justiça econômica, racial, de gênero e climática”, da Casa Fluminense (associação civil sem fins lucrativos que busca, entre outros, fomentar ações voltadas à promoção de igualdade), vai na mesma linha. A entidade é categórica ao afirmar que, em mais um ano de pandemia que acirrou desigualdades, “diversas organizações identificaram que as maiores vítimas da fome e da pobreza são, ainda, as mulheres (cis e trans), pretas, pardas, pobres e moradoras de favelas e periferias”.
Técnicos da Casa Fluminense calculam, por exemplo, o peso do custo de vida mensal no Estado do Rio para uma mulher chefe de família que recebe um salário mínimo (cujo piso no estado é de R$ 1.238,11) na ocupação de empregada doméstica. Se ela depende do transporte ferroviário para ir ao trabalho e voltar para casa, por exemplo, vai desembolsar no mínimo R$ 210 com duas passagens por dia (21 dias úteis), isso sem contar com outros meios de transporte para chegar à estação. Já com a cesta básica, segundo dados do Dieese para abril de 2022, ela gastará R$ 768 e, com o botijão de gás, R$ 100, podendo chegar a R$ 125, conforme dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para maio de 2022. No fim, sobrariam apenas R$ 160,11 para todas as demais despesas, como habitação, educação, saúde e lazer, numa conta que não fecha.
‘Feminização’ da fome
O mais recente estudo da FGV Social sobre a insegurança alimentar no Brasil chega a apontar a “feminização” da fome. Entre 2019 e 2021, o levantamento identificou que aumentou de 33% para 47% a parcela das mulheres no país que não tiveram dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses. Já entre os homens, houve uma redução, de um ponto percentual, de 27% para 26%. “A pandemia impactou mais as mulheres que foram mais afetadas no mercado de trabalho, possivelmente porque carregam, em geral, responsabilidade maior no cuidado dos filhos e da família, atividade relativamente mais demandada durante o isolamento social. Essa possível causa para a feminização da fome magnifica suas consequências para o resto da sociedade, em particular, as crianças”, afirma o documento.
Entre as catadoras de Irajá, as cinco amigas corroboram essas consequências. Claudia, por exemplo, fazia faxinas. Eram pelo menos cinco por semana. Agora, quando muito, faz uma, para complementar os R$ 400 de Auxílio Brasil numa casa com quatro pessoas.
— A mulher se sente muito responsável pela família. Pode estar passando mal, sentindo dor, que vai em busca do sustento. Mas a sensação agora é de que não está tendo mais chance de sair disso (da catação na Ceasa). Ainda mais quando os preços estão nas alturas — diz Claudia, que mora em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
Na Ceasa, por sinal, vêm de cada vez mais longe as pessoas em busca de comida.