‘Sober shaming’: o que é a prática de constranger quem largou o álcool
Dar satisfação aos outros é maior barreira para 1 a cada 3 pessoas que reduzem o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil, mostra levantamento
Substância mais usada ao redor do planeta, os efeitos do álcool na saúde não passam despercebidos: 400 milhões de pessoas vivem com transtornos ligados à bebida, e 2,6 milhões morrem a cada ano por causa dela, segundo os últimos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda assim, quem evita o consumo é visto como diferente e enfrenta um estigma diário por repensar um hábito enraizado na sociedade.
Essa é a realidade por trás de um novo termo, que tem se popularizado nas redes sociais, o “sober shaming”. Traduzida para algo como “humilhação dos sóbrios”, a expressão faz referência a uma prática que tem como alvo quem deixa de beber. Ao diminuírem — ou cortarem completamente — o consumo de álcool, essas pessoas são constrangidas por conhecidos que bebem.
— O consumo de álcool, principalmente na cultura ocidental e brasileira, faz parte de um comportamento ritualizado e esperado. Ele tem uma base de socialização muito grande que torna um grande desafio para quem quer reduzir ou parar o consumo. E existe uma grande pressão mercadológica, temos grandes empresas de álcool que estimulam o tempo inteiro o consumo. E frente às pressões do mundo trabalho, do estudo, do dia a dia corrido, o álcool acaba virando um instrumento para aliviar a tensão — diz Telmo Ronzani, vice-reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e psicólogo líder do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas (Crepeia).
Um novo levantamento realizado pela consultoria de pesquisa e estratégia Go Magenta com mil brasileiros apontou que 62% dos consumidores já pensaram alguma vez em diminuir a ingestão de álcool. Dos que conseguiram, 68% afirmam ser recorrentemente questionados sobre o porquê. Além disso, 49% se sentem desconfortáveis em precisar se explicar e 34% consideram que essa é a principal barreira para a moderação do consumo.
— Nós acabamos sendo os maiores algozes daqueles que querem moderar o consumo. O álcool é a única droga que você precisa se justificar por não usar. Perguntamos se a pessoa está grávida, se ela está doente, e às vezes não pensamos o quanto essas perguntas podem ser íntimas e constrangedoras. A pessoa pode estar tomando algum remédio e não querer falar sobre aquilo, pode ter um episódio perto de alguém com dependência — afirma Gabriela Terra, fundadora da consultoria.
E quando o motivo é apenas não querer, a educadora e mestranda em Artes Clarice Saisse, de 26 anos, acredita que também há uma dificuldade de as pessoas entenderem. No início, a carioca evitava o álcool por questões religiosas, mas com o tempo decidiu continuar sem beber somente por não ter gostado da bebida:
— Em qualquer círculo social, no trabalho, com amigos, existe sempre essa curiosidade do porquê eu não bebo. Mesmo que eu explique o motivo, as pessoas não entendem, parece que fica faltando uma informação. Quando a questão religiosa era um motivo, sinto que era um “argumento” mais aceitável. Mas o apenas não querer é muito difícil de as pessoas entenderem.
A especialista em inteligência de mercado Giulia Wegbrayt, de 29 anos, também relata que a decisão de não beber é recebida com estranheza. A moradora de São Paulo, capital, tinha o hábito de consumir bebida alcoólica até pouco antes da pandemia, quando começou a refletir se fazia aquilo pela pressão dos outros ou porque realmente gostava:
— Todo mundo bebe, você sai para a festa e é o padrão. Mas fui ficando mais velha e percebendo que não gosto de álcool, não gosto como me sinto. Hoje meu máximo é uma taça de vinho em ocasiões especiais. Mas tem sempre uma pressão do “bebe um pouco”, “acompanha a gente”. Sempre tem uma pergunta, uma piadinha. É tão enraizado que as pessoas precisam do álcool para se divertir que elas ficam surpresas, “como assim você não precisa”. Continue lendo…
*VIA O GLOBO