EXIGENTES

‘Sommeliers da vacina’ usam site para saber qual imunizante há nos postos

Onde Tem Vacina informa a marca das doses disponíveis a partir de colaborações anônimas

Segunda dose da Pfizer acaba em 40% dos postos da zona leste de SP (Foto ilustrativa: Prefeitura de Aparecida)

Qual vacina está aplicando hoje? A pergunta foi feita por uma pessoa, às 7h22 desta terça-feira (13), sobre o imunizante contra a Covid-19 disponível na UBS Dr. Humberto Pascale, em Santa Cecília, no centro da cidade de São Paulo.

Alguém que disse estar na unidade básica de saúde, tida recentemente como a campeã em aplicações da vacina contra o coronavírus na capital paulista, respondeu, 1h03 depois: tem Janssen aqui.

A interação na plataforma, que não exige nome, rosto e endereço, virou um ímã para pessoas que, nesta pandemia, ganharam o apelido de “sommeliers de vacina”.

Os sommeliers são profissionais especializados na escolha da bebida que melhor harmoniza com um prato quente em um restaurante.

A vontade de escolher um imunizante por vezes causa desgastes, discussões e mais filas nos postos de saúde. O comportamento também caiu na plataforma Onde Tem Vacina, criada há três meses por Marcos Bonfim, 52, estatístico e engenheiro de sistemas que reside no Rio de Janeiro, em parceria com mais três amigos.

A plataforma exige apenas que a pessoa interessada insira o nome do local onde procura pela vacina. Na página é possível saber quantas doses foram aplicadas na unidade, o tipo de vacina mais usado em tempo real, a avaliação com estrelinhas para os profissionais e se há vacina disponível no momento da pesquisa.

A plataforma também informa a quantidade de doses aplicadas, tanto por dados gerados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) como por pessoas anônimas que disseram ter ido aos locais.

O engenheiro Roberto (nome fictício), 37, havia recebido o link da plataforma em um grupo de WhatsApp com a indicação de que seria possível ver qual vacina estava sendo aplicada em cada posto de saúde da capital paulista.

Com a intenção de ser imunizado com a Janssen, que tem dose única, ele fez uma pesquisa no Onde Tem Vacina no domingo (11) e escolheu uma UBS em que as pessoas afirmavam ter tomado a dose almejada.

Nesta segunda (12), ele chegou ao posto de saúde às 6h50, antes da abertura, mas, ao ser informado pela funcionária de que só havia doses da AstraZeneca, resolveu consultar a ferramenta novamente e foi até outro posto próximo.

Após duas horas na fila, a funcionária do posto avisou que as doses da Janssen haviam acabado, faltando quatro pessoas para a sua vez. Roberto então questionou qual vacina seria aplicada e resolveu ficar na fila para receber a Pfizer.

Na UBS José de Barros Magaldi, no Itaim Bibi (zona oeste), alguém perguntou nesta última segunda: “Bom dia! Alguém sabe dizer qual vacina estão aplicando hoje?”.

“Hoje já passaram avisando que o lote recebido é de AstraZeneca”, respondeu outra pessoa.

Em outro posto da capital paulista, uma pessoa pergunta: “Estão aplicando Janssen agora? Passei de manhã e falaram que só tinha AstraZeneca. Mas vejo no gráfico que algumas pessoas marcaram que tomaram Janssen”.

A reportagem da Folha navegou pela plataforma, que diz ter ao menos 26 mil postos oficiais cadastrados nos 26 estados e no Distrito Federal.

Nos postos de vacinação sem colaboração, uma mensagem fixada convida os moradores da região a informar como está o ritmo da vacinação. “Se você sabe da situação desse posto hoje, informe se tem vacina e deixe seu comentário. Assim você ajuda o próximo!”.

E críticas também não faltam nas interações. Na mesma UBS Dr. Humberto Pascale, uma pessoa escreveu: “As pessoas que querem escolher vacina merecem ser os últimos da fila…os bababa de plantão [sic]”. O comentário ganhou 15 dislikes —o maior termômetro de reprovação da página da UBS —e outras 3 curtidas.

As colaborações também informam quais postos estão desativados, denunciam a falta de estrutura dos espaços, em quais há xepa e os profissionais da saúde que mostram toda a aspiração e aplicação da vacina.

Em junho, a Onde Tem Vacina venceu um concurso promovido pela SBIS (Sociedade Brasileira de Informática em Saúde) por colaborar com a transformação digital na saúde.

Bonfim disse à Folha que a ferramenta foi criada de forma voluntária para informar a localização e a operação dos pontos de vacinação, sobretudo os volantes, de um jeito fácil e compreensível.

A impressão, diz ele, sobre o espaço ter sido ocupado por gente que indica vacina deve-se à abertura recente dos comentários, “que transformaram a plataforma numa espécie de rede social”. A função, ativa há dez dias, já agregou 15.400 interações.

“Não faremos moderação dos comentários porque isso é censura”, diz ele. “Eu não duvido que tenha gente entrando lá e buscando por essa ou aquela vacina sem motivo médico, mas tem muitas pessoas com seus diagnósticos e comorbidades que optaram por um imunizante específico”, afirma. “Não posso dizer para você que lá [plataforma] não tem ‘sommelier.'”

Diferentes reportagens da Folha mostraram, na opinião de especialistas, que a escolha pela vacina contra a Covid-19 ocorre porque parte da população olha apenas para os índices de eficácia dos imunizantes, sem levar em consideração fatores determinantes para o enfrentamento da pandemia, como a cobertura vacinal da população.

“[Quem escolhe] não tem o discernimento de olhar para um estudo clínico e entender como se chegou no resultado”, disse Renato Kfouri, infectologista e diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). “Se metade da população for vacinada com uma vacina de 95% de eficácia, eu não controlo uma pandemia. Mas se eu tiver 90% da população vacinada com uma vacina de 50% de eficácia, a pandemia é controlada.”

O medo das falhas vacinais é outra constante para os sommeliers de vacina. Kfouri explicou que todos os imunizantes estão sujeitos a falhas, mas que provocar a morte é uma possibilidade muito rara, e que os índices de efetividade contra casos graves é muito semelhante entre todos os imunizantes disponíveis no Brasil.