Caso Moïse

‘Somos vistos como bicho’: congoleses em SP relatam rotina de xenofobia e racismo

Neste sábado, manifestações foram convocadas em São Paulo e no Rio para pedir justiça

Foto: Reprodução - TV Globo

O assassinato bárbaro de Moïse Mugenyi Kabagambe é mais um capítulo da violência que muitos refugiados sofrem cotidianamente no Brasil. O País tem um histórico de receber pessoas de outras nacionalidades, mas elas também sofrem com violência, racismo e desigualdade social. Neste sábado, manifestações foram convocadas em São Paulo e no Rio para pedir justiça.

A comunidade congolesa na capital paulista promete comparecer em peso e alguns relatam que o crime revela o quanto esse povo africano ainda sofre com discriminação, xenofobia e racismo. “Eu sofri muito preconceito. Um chefe meu pedia para eu dançar no trabalho. As pessoas imitam nosso sotaque ou perguntam se dormíamos com leões”, conta Prudence Kalambay, que está há 14 anos no Brasil como refugiada.

“Muitas pessoas estão querendo ir embora por causa desse crime. Somos vistos como bichos, infelizmente. Que culpa eu tenho de ser mulher africana, ou ter nascido na República Democrática do Congo? Não tenho vergonha disso, tenho orgulho do meu tom de pele. Mas por que nos matar? Qual a diferença de uma pessoa branca ou preta?”, questiona.

Segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), desde 2016 foram contabilizados 858 refugiados do Congo vindos para o Brasil, a maioria para São Paulo e Rio de Janeiro. Como os números oficiais passaram a ser tabulados apenas em 2016, a estimativa é que exista pelo menos o dobro de refugiados congoleses por aqui.

A liderança no ranking de refugiados no Brasil neste período é de venezuelanos, com 57.025 pessoas. Depois vem Senegal (3.487), Haiti (2.848), Síria (2.364), Angola (1.336) e Cuba (1.293). Já Guiné-Bissau (605) e Nigéria (465) estão abaixo do número de pessoas da República Democrática do Congo.

No Rio, os congoleses estão concentrados em Brás de Pina, na zona norte, mas na capital paulista estão mais dispersos, principalmente na zona leste e na região central, em bairros variados. Vieram para o Brasil fugindo da guerra em um país que tem enorme riqueza mineral, mas péssima distribuição de renda e um dos piores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo.

“Eu escolhi o Brasil por causa das novelas da Globo. Não estava programado para mim. Mas me apaixonei por isso e decidi vir para cá. A maioria que vem é intelectual, com diploma de professor, fala outros idiomas… Mas só consegue trabalho como ajudante, pois não valorizam a nossa formação. Ser artista então é mais complicado ainda. Quem tem tom de pele mais claro tem mais chance que a gente”, lamenta Prudence, que está pedindo ao governo brasileiro permissão para trazer sua mãe do Congo e até agora não foi atendida. “Ela está doente, queria poder ajudar.”

Claudine Shindany tem formação em comunicação, trabalhou para a Unicef, e veio para o Brasil porque estava sendo perseguida na República Democrática do Congo. “A gente está trabalhando para sobreviver. Existe a barreira da língua, então quando chega isso já é um problema. Só algumas pessoas que estudaram aqui conseguem ter algum cargo melhor. A primeira coisa que vão te oferecer é no setor de limpeza. Eu conheço jornalistas que trabalhavam aqui fazendo faxina”, conta.

Ela relata muitos episódios tristes que já presenciou ou sentiu na pele. “Eu nunca fui discriminada em outros lugares, mas aqui no Brasil sofri preconceito. Na época eu nem sabia que isso existia. Eu como mãe, irmã, tia, prima, sofro em dobro. Me coloco no lugar dessa mãe que perdeu o filho. Ela escapou das bombas e do estupro, mas aí chega em um país para reconstruir sua vida e encontra essa morte cruel do filho. O país que acolhe tem a responsabilidade de dar segurança e oferecer uma vida digna”, diz.

Ambas reforçam que ter carteira de trabalho assinada é raro, até para aqueles que possuem formação com ensino superior, e que o maior problema é encontrar moradia. Mesmo que consigam dinheiro para pagar um aluguel, os proprietários muitas vezes demonstram preconceito e não querem fazer negócio. A saída para alguns é se manter com auxílios do governo, que são irrisórios. “É tão complicada a questão da moradia que a maioria acaba indo para pensões, ocupações ou favelas”, diz Claudine.

Fluxo ocorre por situação de guerra

Luiz Fernando Godinho, porta-voz oficial da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), explica que os refugiados congoleses têm características étnicas e forte ligação religiosa. “Eles procuram manter suas tradições, fazem seus casamentos típicos e possuem vínculo forte com a igreja, mas também apresentam uma diversidade. O fluxo de congoleses se dá 100% por causa da situação de guerra no país.”

Ele lamenta o crime bárbaro que ocorreu com Moïse e diz que a agência tem procurado apoiar a família em tudo que for necessário. “Foi terrível o que aconteceu e nos causa uma comoção muito grande. Mas é muito importante não generalizar essa situação. O Brasil tem um histórico de proteção e acolhimento que não condiz com esse fato. O que aconteceu no Rio é um episódio que não representa a relação dos brasileiros com os refugiados”, afirma.

Neste sábado, às 10h, diversos movimentos sociais vão participar do ato em memória de Moïse. Em São Paulo ele será realizado na Avenida Paulista, em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) “Todos os congoleses estão se mobilizando para essa manifestação. Porque isso pode acontecer comigo hoje, com você amanhã. O primeiro sentimento é de raiva. A gente não se sente segura, não é o primeiro que foi espancado. Já tivemos outros episódios e nenhuma delas era bandido”, desabafa Claudine.