STF decide se Brasil pode julgar Alemanha por barco afundado por nazistas
Nesta quinta-feira (24), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar um caso que…
Nesta quinta-feira (24), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar um caso que deve render muitos debates: se um pequeno grupo de descendentes de pescadores do litoral norte do Rio de Janeiro têm o direito de pedir ressarcimento ao governo da Alemanha por um crime cometido contra seus parentes ainda na Segunda Guerra Mundial.
A ação, que se arrasta na Justiça há 14 anos – os quatro últimos deles na Suprema Corte (que, por sua vez, já adiou o julgamento três vezes) – remonta a um fato ocorrido 77 anos atrás, quando o barco pesqueiro Changri-Lá com dez pescadores brasileiros a bordo foi atacado, metralhado e afundado pelo submarino nazista U-199 no litoral de Cabo Frio, no dia 22 de julho de 1943.
Nenhum dos pescadores sobreviveu.
Agora, os seus descendentes (quase todos netos das vítimas, já que a maioria dos filhos também já morreu) cobram uma indenização do governo alemão – que alegou, no início do caso, com base nas normas do Direito Internacional, “imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro”. Ou seja, a impossibilidade de ser julgado por outro país contra a sua vontade.
Um caso inédito
“Não é bem assim”, diz o advogado carioca Luiz Roberto Leven Siano, que defende os parentes das vítimas. Todos são moradores da região de Arraial do Cabo, no litoral norte do Rio de Janeiro, de onde aquele barco partiu, quase oito décadas atrás, para nunca mais voltar.
“Quando se tratam de direitos humanos, a interpretação é outra. Eles são imperativos, e o julgamento pode acontecer à revelia”, diz Siano, que considera que a sessão de hoje do STF será histórica, “porque será a primeira vez que um crime de guerra será julgado no Brasil tanto tempo depois”.
“O Supremo vai estar julgando um paradigma, algo que nunca aconteceu antes, e que vai gerar jurisprudência, ou seja referência para casos semelhantes no futuro”, vibra o advogado, que aceitou defender as famílias sem cobrar honorários, já que se tratam de “pessoas muito humildes, que passaram a vida inteira sendo injustiçadas”.
Esquecido por mais de meio século
O advogado se refere a um detalhe histórico desse caso sui-generis.
Embora o ataque ao barco dos pescadores tenha ocorrido em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial, o reconhecimento do seu afundamento intencional só ocorreu mais de 50 anos depois graças a um historiador carioca. Elísio Gomes Filho conseguiu ter acesso ao depoimento dado pelo comandante do submarino, Hans Werner Kraus, ao governo americano na época da sua prisão, em que ele admitiu o ataque ao barco dos pescadores brasileiros.
Com base nisso, o Tribunal Marítimo Brasileiro, que na época havia registrado o afundamento do barco pesqueiro como um simples caso de naufrágio causado pelo mar, reabriu o processo, e, em 2001, alterou o veredito para ataque do submarino U-199.
Pescadores viraram heróis de guerra
Na ocasião, os nomes dos dez pescadores também foram incluídos no Panteão dos Heróis de Guerra, no Rio de Janeiro, e a orla de uma das praias de Arraial do Cabo passou a ser conhecida pelo nome do barco: Changri-Lá.
Desde então, os descendentes das vítimas tentam conseguir algum tipo de compensação do governo alemão.
“Mesmo sendo tempos de guerra, não é justo o que eles fizeram. Os pescadores estavam apenas pescando. O ataque foi tão absurdo, que, na época, ninguém duvidou que o barco tivesse afundando por causa do mar”, diz um dos descendentes das vítimas, Paulo Cruz, filho da ex-esposa do timoneiro do Changri-Lá, que morreu 17 anos atrás, sem saber a verdade sobre a morte do marido.
“Nem ela nem as outras viúvas”, diz Paulo. “Hoje, da ‘Família Shangri-lá’, como os familiares das vítimas passaram a se tratar, só restaram netos e duas filhas diretas, mas a mais nova delas já está com 81 anos de idade, e a outra, que tem 93, vive de favor, porque nem casa tem para morar”.
Indenização milionária
Na inusitada ação, o advogado Siano, que é especialista em direito internacional, já foi piloto de navio e é também candidato à presidência do clube Vasco da Gama, pede indenização de R$ 1 milhão para cada família, “mas reajustados desde a época dos fatos”. Ou seja, com valores corrigidos desde 1943.
“Nem sei quanto isso daria em dinheiro de hoje”, confessa. “Mas eles merecem”, diz o advogado, que acredita em sucesso no julgamento do STF, embora preveja uma sessão acalorada.
“Vai ser um marco na Justiça brasileira”, aposta. “Mas certamente haverá debate, porque os placares deste caso sempre foram bem apertados. No último plenário, que discutiu a admissibilidade da ação, terminou 6 a 5, o que mostra como o tema é polêmico”.
Como foi o caso
Das 34 embarcações brasileiras afundadas na Segunda Guerra Mundial, o Changri-Lá sempre foi o caso menos conhecido, já que se tratava de um simples barco de pesca (clique aqui para conhecer a história deste covarde ataque no mar brasileiro).
Também contribuiu para isso o fato de seu afundamento por um submarino alemão só ter sido reconhecido meio séculos depois.
Agora, 77 anos depois, os descendentes das vítimas, finalmente, esperam que a justiça seja feita, o que deve começar hoje mesmo, com o julgamento do Supremo.