STF julga nesta quarta-feira direito ao esquecimento no Brasil; entenda
O recurso que será julgado avaliará uma ação da família de Aida Curi, mulher que foi estuprada e assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, contra a TV Globo
O STF (Supremo Tribunal Federal) julga nesta quarta-feira (30) um caso que pode criar um precedente jurídico para que o “direito ao esquecimento” seja reconhecido em outras ações e ganhe mais força no Brasil. Esse direito significaria, entre outras coisas, que cidadãos poderiam pedir para ter seus nomes removidos de resultados de buscas na internet sobre fatos passados que perderam valor —ou seja, não serem “achados” por Google, Bing e afins.
O recurso que será julgado avaliará uma ação da família de Aida Curi, mulher que foi estuprada e assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, contra a TV Globo. Os familiares relatam que o crime foi alvo de cobertura intensa da imprensa à época e protestam que, quase 50 anos depois, a história tenha voltado aos holofotes no programa “Linha Direta Justiça” em 2004.
Os familiares lutam “pelo reconhecimento do seu direito de esquecer esta tragédia” e resgatam uma tese reconhecida e defendida na Alemanha e em casos isolados no Brasil. Um deles diz respeito a uma promotora que venceu no STJ (Superior Tribunal de Justiça), em 2018, uma briga para ter seu nome desassociado de notícias de uma suposta fraude em um concurso por vaga no TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).
A TV Globo defende que a veiculação do programa tinha como finalidade o relato de acontecimentos históricos, de interesse público, “relacionados a crimes de grande repercussão e seus respectivos julgamentos pelo poder Judiciário”. A emissora argumenta que os direitos à intimidade e imagem de Aida Curi e seus familiares não se sobrepõem ao interesse da sociedade em ter o acesso às informações sobre um fato histórico.
A empresa venceu o caso no STJ, que considerou que não era possível tratar do acontecimento de uma forma jornalística sem mencionar o nome de Aida Curi, logo não existia a possibilidade de esquecimento.
Como a família levou o processo para o STF, que reconheceu a repercussão geral no tema e viu a oportunidade de analisar se o direito ao esquecimento pode ser aplicado na esfera civil, o Google entrou no processo como uma das partes interessadas que farão colaborações ao julgamento.
Além do gigante de buscas, também participarão com o mesmo papel a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro), a Artigo 19, o IBDCIVIL (Instituto Brasileiro de Direito Civil), o Instituo Palavra Aberta, o Instituto de Direito Partidário e Político/PLURIS e a Yahoo! do Brasil.
Hora certa de se discutir direito ao esquecimento?
Para Roberto Algranti Filho, advogado da família Curi, este é um caso ideal para que o STF analise a existência de um direito ao esquecimento no Brasil —mesmo que tal direito acabe definido fora dos contornos apresentados pela ação da família.
“Todos os elementos necessários estão lá: decurso do tempo, fatos privados e pessoas que não renunciaram à privacidade. Em se reconhecendo a existência do direito ao esquecimento, os requisitos vão permitir que ele seja aplicado ao caso concreto”, afirma. “Não sei qual seria um caso melhor para se chegar ao STF.”
Porém, a questão do direito ao esquecimento chegou durante o curso do processo do caso Aida Curi. Na análise de Carlos Affonso de Souza, diretor do ITS-Rio, a ideia foi “contrabandeada” para o caso, que nasceu com foco na preservação da imagem e memória da família da vítima do crime. Para Thiago Oliva, coordenador de liberdade de expressão do InternetLab, pautar este caso como direito ao esquecimento não é o ideal.
“Ele é bem diferente, não somente por não envolver a internet, mas também pelo pedido — indenização pela veiculação de um documentário — e seus fundamentos, não relacionados à proteção de dados”, afirma Oliva.
Ele compara o direito ao esquecimento concebido na União Europeia, que consiste em pedidos para que os mecanismos de busca removam resultados de pesquisas — mas a informação continua na fonte. “Você não interfere na produção dos veículos de mídia. Isso pode acabar entrando em pauta porque mobilizaram a ideia de um ‘direito ao esquecimento’ neste caso”, analisa.
Algranti Filho defende que a lógica de direito ao esquecimento estava no processo desde o início e que é irrelevante que este instrumento tenha sido introduzido depois. O advogado da família Curi argumenta que a desindexação —retirada de resultados em buscas na web— não é a causa da tese, mas um efeito dela.
Ao buscar o estabelecimento de um direito ao esquecimento, a família da vítima diz não buscar a destruição de uma fonte que narra um fato verídico, mas proteger a saúde mental de seus membros evitando que a memória traumática do crime seja revisitada após novas divulgações pela mídia.
“Não pedimos desindexação. Nunca pedimos liminar para o programa não ser exibido. Por ser um crime que envolve pessoas anônimas, cujo nome só foi alçado pela tragédia e não pertencem à memória nacional, dizemos que elas têm direito a se preservar, a se manterem saudáveis”, argumenta Algranti Filho.
Justamente pelos pedidos da família, Carlos Affonso de Souza considera este um caso ruim para o STF discutir direito o tema. “Primeiro, é um caso formulado em bases estranhas ao direito ao esquecimento. Segundo, diz respeito à televisão. Não tem nada que ser removido, desindexado, nada a ver com internet. Essa decisão do STF me parece um uso inadequado para a construção de um direito ao esquecimento.”
Riscos e precedente no Brasil
Em debate promovido pelo site Jota, Eduardo Mendonça, advogado que representará o Google no julgamento, disse considerar perigosa a possibilidade de que consolidação de um direito ao esquecimento no Brasil.
“Alguém que tem um episódio lamentável no passado, doloroso e que gostaria de virar a página com maior facilidade… todos nós conseguimos nos relacionar com esse interesse. A questão é se queremos que a autoridade estatal possa dizer se um conteúdo que não é falso nem ofensivo deve ser removido por uma lógica editorial de que seja mais conveniente ele não estar acessível”, argumentou Mendonça, no que acredita ser algo “incompatível com a ideia básica de liberdade de expressão”.
Casos anteriores de direito ao esquecimento reconhecidos por tribunais inferiores ao STF também geram a preocupação de que efeito colateral uma decisão favorável à família de Aida Curi pode causar.
Souza recorda o caso da promotora que teve ganho de causa parcial no STJ, que avaliou a situação como excepcional e merecedora de desindexação. No entanto, a partir do precedente criado pela decisão, outras ações que pediam direito ao esquecimento em Tribunais de Justiça estaduais foram bem-sucedidas posteriormente.
“Essa é uma preocupação genuína, que mira num caso de TV, envolve um pedido que atravessou o meio do caminho do processo e, caso o Supremo reconheça a procedência, legitimaremos um direito ao esquecimento que vai pegar do acusado à Lava-Jato, pessoas envolvidas em crimes no período autoritário, pessoa que foi inserida num site erroneamente ao sujeito que quer se ressocializar. É tudo misturado, gerando efeitos imprevisíveis”, alerta.
Há também o risco de restrição ao acesso à informação e ao direito à memória se o direito ao esquecimento for reconhecido e mal delimitado pelas autoridades. “Os parâmetros têm que ser muito bem colocados, para que não haja o risco de muita informação relevante do ponto de vista do interesse público ficar invisível. Nesse cenário, teremos cada vez maior dificuldade para encontrar informações na internet”, conclui Thiago Oliva, do InternetLab.