STJ tranca ação por tráfico contra homem revistado por suposta ‘atitude suspeita’
Magistrados seguiram o voto do relator no sentido de que a alegação genérica de 'atitude suspeita' é insuficiente a realização de busca pessoal
Os ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiram trancar um processo por tráfico de drogas contra um homem que foi abordado e revistado pela polícia sem ‘nenhuma justificativa concreta’, além de ‘vaga menção’ a uma suposta ‘atitude suspeita’.
Por unanimidade, os magistrados seguiram o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, no sentido de que a alegação genérica de ‘atitude suspeita’ é insuficiente para medida invasiva que é a realização de busca pessoal, conhecida popularmente como ‘baculejo’, ‘enquadro’ ou ‘geral’.
Segundo o ministro, há três razões principais para que se exijam ‘elementos objetivos e concretos’ para a realização de revistas, a começar pela evitação do uso excessivo da medida ‘invasiva e constrangedora’, que implica a detenção do indivíduo, ainda que por instantes. Além disso, Schietti citou a necessidade de garantir a ‘sindicabilidade da abordagem’, ou seja, permitir que a medida possa ser questionada e ter sua validade controlada pelo Judiciário.
Já o terceiro motivo para que a busca pessoal seja realizada somente com base em ‘elementos sólidos’ é evitar a repetição ‘de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural’.
“Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc”, ressaltou o ministro em seu voto.
Segundo Schietti Cruz, a ausência de justificativas e de elementos a legitimar a ação dos agentes públicos — diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade. “Infelizmente, ter pele preta ou parda, no Brasil, é estar permanentemente sob suspeita”, destacou.
A decisão foi proferida em julgamento realizado na terça-feira, 19, ocasião em que os ministros fixaram o entendimento de que, para realização de revista, é necessário que haja ‘fundada suspeita’ – ‘baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto’ – de que a pessoa esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ilícitos, ‘evidenciando-se a urgência de se executar a diligência’.
Segundo Schietti Cruz, não se pode dar um ‘salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias baseadas em suspeição genérica’.
“O art. 244 do Código de Processo Penal não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. […] Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de ‘fundada suspeita'”, registrou o relator seu voto.
‘Tribunais de rua’
O magistrado registrou que, a pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as polícias, ‘em verdadeiros “tribunais de rua”‘, constrangem os ‘elementos suspeitos’ com base em preconceitos estruturais, restringindo indevidamente seus direitos fundamentais, e deixando-lhes graves traumas – consequentemente prejudicando a imagem da própria instituição e aumentando a desconfiança da coletividade sobre ela.
O ministro chegou até a abrir seu voto com o trecho de uma canção da banda O Rappa, que diz: “Era só mais uma dura/ Resquício de ditadura/ Mostrando a mentalidade de quem se sente/ Autoridade neste Tribunal de Rua”.
Nesse contexto, Schietti destaca a importância do uso de câmeras pelos agentes de segurança, ‘a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso’.
O voto do relator ainda apresentou dados das Secretarias de Segurança Pública do País que mostram que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1% – “isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade”, ressaltou.
Necessidade de reflexão por parte de todos integrantes do sistema de Justiça
Nessa linha, o magistrado afirmou que é necessário que todos os integrantes do sistema reflitam sobre ‘o papel que ocupam na manutenção da seletividade racial’. Segundo Schietti Cruz, ‘o padrão discriminatório salta aos olhos, à primeira vista, nas abordagens policiais’, mas as práticas como a que foi discutida no processo analisado ‘só se perpetuam porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto de representantes do Ministério Público, como também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências de segurança’.
“Em paráfrase ao mote dos movimentos antirracistas, é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso humanizante e ações verdadeiramente transformadoras de certas práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir, apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa Constituição, de construção de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, ressaltou o ministro.
Ao fim de seu voto, o ministro defendeu que fosse dada ciência da decisão do STJ aos presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados, aos presidentes dos Tribunais Regionais Federais, às defensorias públicas dos Estados e da União, ao procurador-geral da República, aos procuradores-gerais dos Estados, aos Conselhos Nacionais da Justiça, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao ministro da Justiça e Segurança Pública e aos governadores dos Estados e do Distrito Federal.
Schietti pediu aos chefes dos Executivos estaduais que que deem conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal, estadual e distrital.
Ilegalidade da busca e ilicitude da prova
No caso analisado pelo STJ, os policiais que abordaram o acusado alegaram terem se deparado ‘com um indivíduo desconhecido em atitude suspeita’ e, ao revistarem sua mochila, encontraram porções de maconha e cocaína em seu interior, o que resultou na prisão em flagrante do homem.
No entanto, segundo Schietti Cruz ponderou que o fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não anula a ‘ilegalidade prévia’ da abordagem.
Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ‘não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida’, ressaltou o ministro.
Assim, segundo Schietti, a violação das regras e condições para a realização de busca pessoal implica na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida.