Tecnologia ajuda no combate ao assédio no transporte público, diz levantamento
Em Goiás, uma lei em fase de implementação permite a criação do aplicativo conhecido como “botão do pânico”, no combate à violência doméstica
Para os homens, escolher a melhor forma de se locomover e a rota significa encontrar a opção mais rápida e eficiente para chegar ao destino. Aliás, alguns aplicativos até mesmo facilitam essa tarefa, apresentando a situação do trânsito, os horários dos ônibus e a movimentação no metrô, por exemplo. Para as mulheres, porém, essa decisão infelizmente envolve um outro elemento: o assédio. Em levantamento de 2019 do Instituto Patrícia Galvão e do Instituto Locomotiva, 97% das entrevistadas afirmaram já ter sido vítimas de importunação sexual em meios de transporte.
O problema grave ainda é uma realidade nas ruas e, também, no transporte público. Ações institucionais e iniciativas públicas afloram em todo o País. Nesse contexto, a tecnologia também surge como uma aliada para enfrentar a situação e lutar contra a desigualdade em relação à mobilidade, utilizando até mesmo a inteligência artificial nessa missão.
Apesar de popularmente ficarem conhecidos como assédio sexual, os casos são tipificados como importunação sexual, com pena de reclusão de 1 a 5 anos. O artigo 215-A, aliás, foi incluído em 2018 no Código Penal brasileiro exatamente para conseguir punir os agressores. Juiz de direito e vice-presidente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), Vitor Umbelino Soares Júnior explica que a mudança significou um avanço, já que preencheu uma lacuna que existia. “Agora a pena ficou mais significativa”.
A mudança no Código Penal começou a ganhar corpo em 2014. Na época, o assunto teve grande repercussão com a divulgação dos casos e o combate aos “encoxadores”, criminosos que abusavam de mulheres no transporte público de São Paulo e, posteriormente, divulgavam fotos e vídeos dos atos nas redes sociais. Antes, os casos eram julgados como mera contravenção penal, afirma Thaís Périco, advogada ativista pelos direitos humanos das mulheres e cofundadora da ONG Hella.
Tecnologia em ação
Seja para inibir a ação dos criminosos quanto para facilitar a denúncia e a identificação dos culpados, a tecnologia desempenha papel importante. Em diversas cidades do País, câmeras instaladas em ônibus e estações do metrô registram imagens que – após solicitação – são encaminhadas para a Polícia Civil, ajudando na investigação dos casos. Em Goiás, por exemplo, lei aprovada esse ano e em fase de implementação permite a criação do aplicativo conhecido como “botão do pânico”. Thaís destaca ainda que vários municípios implantaram uma lei instituindo que o motorista de ônibus pare fora do ponto habitual após determinado horário quando solicitado por uma mulher.
Muito utilizados como uma alternativa aos coletivos, os aplicativos de transporte também investem na criação de diversas soluções para coibir os casos. O resultado? Redução de 23% no número de ocorrências na plataforma da 99, por milhão de corridas, no primeiro semestre de 2020. “Companhias de motoristas de aplicativos e taxistas têm vindo nessa onda de tentar garantir direitos e proteção às mulheres”, destaca a ativista.
Para obter essa mudança, a 99 investiu em inteligência artificial para facilitar denúncias e bloquear instantaneamente agressores. Além disso, desenvolveu ferramentas específicas para a segurança das mulheres. Algoritmo contra o assédio, o Rastreador de Comentários vasculha avaliações de passageiras, passageiros e motoristas, identificando denúncias automaticamente e, posteriormente, seguindo um protocolo de atendimento humanizado. Em linhas gerais, a ferramenta faz a leitura dos comentários deixados no app após o término das corridas, detectando uma série de palavras e contextos.
A solução foi desenvolvida em parceria com a consultoria Think Eva, um braço da organização feminista Think Olga que cria estratégias para promover igualdade de gênero. “Com o Rastreador de Comentários, conseguimos priorizar melhor esses casos. Isso significa que acolhemos as vítimas mais rapidamente e tomamos medidas como o bloqueio dos agressores de forma imediata”, diz Thiago Hipólito, Diretor de Segurança da 99. “Hoje, 80% das denúncias deixadas nos comentários são detectadas pela ferramenta”.
O aplicativo da 99 permite ainda a gravação de áudio durante as corridas. Ao entrar no veículo, o passageiro é informado automaticamente sobre o recurso. Os arquivos ficam armazenados no base de dados da empresa e podem ser usados como evidência em caso de conversas inadequadas. Algumas cidades brasileiras já contam também com o 99 Mulher, recursos que oferece a oportunidade para as motoristas atenderem apenas passageiras com perfil do mesmo gênero.
Segurança
Mãe de 3 filhos, Leuciene Maria de Mendonça Marques, de 32 anos, ficou desempregada logo no início da pandemia do coronavírus. “Eu trabalhava como costureira”. Para sustentar a casa, ela começou a trabalhar como motorista de aplicativo em Goiânia. Durante os seis primeiros meses, ela afirma que foi vítima em uma ocasião. “Ao chegar no destino, o passageiro começou a me elogiar e queria me beijar. Exigi respeito no meu trabalho”. Assustada, ela entrou em contato com aplicativo, que promoveu rapidamente o bloqueio. “Fico mais tranquila assim”.
Além do aparato tecnológico, Leuciene afirma que também conta com a ajuda de um grupo de motoristas da região que utiliza um aplicativo de mensagens instantâneas para facilitar a comunicação. “Quando vamos para uma área considerada de risco, avisamos. Ao final da corrida, mantemos contato. Se demorar muito, logo alguém já envia uma mensagem”.
A pontuação dos motoristas também serve como um indicativo para as mulheres. Profissional com a melhor avaliação em Brasília nos últimos 30 dias, Rhuan Rafael Assis de Mendonça, de 25 anos, afirma que as passageiras costumam usar esse critério. “Quando entram no carro, elas comentam”. De acordo com ele, muitas afirmam que priorizam o aplicativo em determinados horários para evitar o transporte público. “Algumas já falaram que fazem isso para evitar o assédio”. Para se proteger contra possíveis casos na rua, algumas mulheres também percorrem pequenos trajetos com o aplicativo. “Elas descem do ônibus e chamam o carro para não precisar andar até a casa”.
Para complementar, a ativista Thaís Périco recomenda compartilhar a rota e avisar sobre a viagem para algum familiar ou amiga. “É importante cuidar também desses pequenos detalhes”. O enfrentamento à violência contra a mulher é coletivo. Por isso, é necessário contar com a ajuda de todos nesse combate. “Precisamos de um olhar acolhedor para esse assunto”.