‘Temos testes suficientes, o gargalo agora é logística e processamento’, alerta VP da Fiocruz
Fator limitante não é mais a quantidade dos kits de testagem, mas logística, falta de pessoal treinado e equipamento para processar exames
O Brasil ainda enfrenta problemas para atender a demanda de testes diagnósticos da Covid-19, mas o fator limitante não é mais a quantidade dos kits de testagem, e sim logística, falta de pessoal treinado e equipamento para processar exames. Essa é a avaliação de Marco Aurélio Krieger, vice-presidente (VP) de produção e inovação em saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que está trabalhando para conseguir ampliar a capacidade de diagnóstico do Brasil.
Em entrevista ao GLOBO, o pesquisador conta o que está sendo feito para cobrir o gargalo da testagem, que tem sido um dos principais desafios na reação contra o novo coronavírus.
O Brasil, assim como outros países, não tem testes de Covid-19 suficientes para atender a demanda. Até agora, segundo o Ministério da Saúde, realizou 292 mil testes em pacientes com sintomas respiratórios, o que e considerado pouco. O que está sendo feito para superar o problema?
Nós estamos num momento em que a limitação dos testes já esta sendo superada. Hoje, com a produção da Fiocruz, com a produção por São Paulo e a doação da Petrobras, temos uma quantidade de testes disponíveis no Brasil que já é maior do que a capacidade de processamento. Existe então uma questão de logística que deve ser enfrentada: a logística de coleta e distribuição das amostras e a questão do processamento.
Já está sendo feito planejamento por algumas unidades de apoio para lidar com isso. Antes da pandemia, a capacidade que nos estimávamos para os LACENs (Laboratórios Centrais de Saúde Pública) era de 3.000 testes por dia. Hoje essa capacidade já foi ampliada por uma serie de arranjos locais e está em cerca de 10 mil testes por dia no Brasil.
São Paulo busca realizar até o final do mês 8.000 testes por dia. Hoje estão fazendo cerca de 2.000. A Fiocruz está instalando unidades de apoio à rede de diagnóstico, unidades automatizadas. Já instalamos cinco. Hoje estamos adicionando à rede uma capacidade de 2.700 testes por dia, e pretendemos até o final do mês ampliar essas instalações para chegar num número bastante significativo: de 20 a 25 unidades fazendo entre 11 mil e 13 mil testes por dia, só na Fiocruz.
Essa capacidade de processamento está crescendo, e vai chegar num número próximo a 30 mil testes por dia no Brasil, que é um número significativo. Isso permite que a gente altere a estratégia de testagem. Até o momento nós estamos com uma estratégia que restringe a testagem aos casos sintomáticos. Agora nós vamos começar a ampliar para testar também os profissionais dos serviços essenciais, como os saúde, logística, transporte público e segurança. A gente está no limiar de fazer essa transição.
Para fazer uma testagem maciça, como foi proposto por alguns países, a gente ainda precisa avançar nessa capacidade de processamento. Países que tiveram o maior sucesso em testagem, como é o caso da Coreia do Sul, da Alemanha, dos EUA, ainda assim testaram um proporção relativamente pequena da população, abaixo de 1%.
No Brasil, com a capacidade de 30 mil testes por dia a gente deve conseguir cobrir quase 0,5% da população. Considerando que o país tem uma dimensão continental e que a evolução da doença não vai ser a mesma em todo o território, isso deverá ser uma cobertura de testagem bastante adequada.
Mas estamos ainda no início do aumento exponencial dos casos, situação que esses países já vêm enfrentando há um pouco mais de tempo.
A gente precisa se preocupar com essa demanda futura, mas hoje eu diria que o gargalo é mais de logística e do processamento dos testes do que da disponibilidade dos testes.
No mês passado nós entregamos 58 mil testes, neste mês vamos entregar 1,2 milhão de testes. Em menos de um mês, então, multiplicamos por 20 a quantidade de testes. Mas a capacidade de processamento não cresceu nessa mesma dimensão. Ela cresceu abaixo de cinco vezes, e a gente precisa ainda fazer um esforço muito grande.
Como a questão da logística está impactando?
Fora a questão do processamento, claro, tem a questão da coleta. Se a gente está pensando em fazer 1 milhão de testes por mês, precisa ver se temos disponíveis os kits de coleta, que envolvem os *swabs* (*cotonetes médicos*). Esses insumos também precisam ser dimensionados nesse mesmo nível de testagem. Isso está sendo feito.
Além disso, a gente está prospectando outras alternativas tecnológicas, para aumentar ainda mais a capacidade de testagem. Basicamente, na Fiocruz nós estamos ainda, numa fase de avaliação tecnico-científica, avaliando duas questões. Uma é a do *pooling* das amostras, que significa juntar várias amostras para testar. Outra é a das tecnologias de sequenciamento maciço paralelo de nova geração. Esses equipamentos podem chegar a fazer até a 20 mil testes por corrida. Isso está sendo proposto agora nos EUA, com um investimento muito grande do governo nas empresas de tecnologia. Nós estamos discutindo isso para estarmos juntos nessa avaliação tecnológica também.
O problema maior com os testes de RT-PCR, os testes moleculares mais importantes para decisão clínica, é a falta de equipamento ou a falta de pessoal treinado?
Eu acho que são os dois. Hoje a gente não tem tantas unidades automatizadas e estas vão precisar de pessoas treinadas. Nós estamos trabalhando nisso na Fiocruz. Já temos equipes treinadas, mas para que a gente dê vazão a essa demanda, vamos ter que operar em regime de sete dias por semana, 24 horas por dia. Então, precisam ser ainda criadas essas equipes dentro da Fiocruz. É possível que em outros locais na iniciativa privada já existam pessoas que possam ser rapidamente treinadas, mas como as plataformas ainda não estão disponíveis, vai ter um tempo para que se consiga fazer isso.
Nós já temos cinco unidades que estão instaladas e estão entrando em operação, já processando amostras. E vamos ampliar rapidamente esse número.
Existe ainda uma fila razoavelmente grande de exames a espera de resultado. Em São Paulo ela chegou a 16 mil exames no pior momento. Ela deve ser reduzida?
Isso está relacionado à capacidade de processamento. A capacidade em São Paulo, pelo que eu sei, está sendo ampliada. Estão buscando ter uma capacidade de até 8.000 por dia num futuro próximo. No sistema público, essa capacidade hoje não está ainda nesse nível, está ao redor de 2.000. No início da pandemia ela era da ordem de 400 por dia, e olha que o estado já um super-laboratório público, com quase o triplo da média nacional de testagem. Mas para a situação da pandemia era pouco. Essa fila, então, já deve estar um pouco menor, e a expectativa que me informaram é que ela se encerre nessa semana ainda. Na maioria dos outros estados, para testagem dos sintomáticos, já não existe mais essa fila. O que a gente tem é um número maior de processamentos diários.
Os testes sorológicos de anticorpos, os chamados testes rápidos, podem ajudar, mesmo tendo menos utilidade em clínica? A Coreia e alguns outros países usaram esses testes para descobrir quem já estava imunizado por ter contraído e se recuperado, depois liberar essas pessoas.
A gente tem que ver a questão clínica dos sintomáticos. O teste molecular é essencial para diferenciar e estudar protocolos diferenciais de tratamento. Isso é importante porque a Covid-19 é um quadro sindrômico, e você pode ter daqui a pouco isso em maior escala a circulação concomitante da influenza com a Covid-19. São duas doenças, uma você possa tratar com certo medicamento e outra não. Então, na clínica não tem como substituir.
Os testes rápidos têm um importância, porém, na questão da expectativa de que a gente consiga identificar pessoas que já tiveram contato com a doença mesmo sem saber, e estariam com um nível de proteção alto. Essa estratégia também vai ser bastante importante, embora cada dia mais apareçam casos de pessoas que estão se reinfectando. É um número bem pequeno ainda, menos de 200 relatos, mas que faz com que a OMS (Organização Mundial de Sáude) tenha cuidado em relação a esse nível de proteção. Pelo que observamos nos outros países, existe claramente essa capacidade de a grande maioria das pessoas conseguir a partir do desenvolvimento da reposta imunológica controlar a doença.
EUA e Reino Unido criticaram a qualidade alguns dos testes sorológicos adquiridos. Alguns tem especificidade baixa, que geram falsos positivos, e outros sensibilidade baixa, e geram falsos negativos. O Brasil pode enfrentar isso?
Existe teste de boa qualidade e teste de um desempenho abaixo do esperado. Isso é normal, pelo pouco tempo de desenvolvimento desses testes. Acho que hoje a gente tem testes já relativamente bons para identificar uma soroconversão (transição do estado negativo para positivo) de 14 dias. O que falta a gente avaliar, é quais são os testes que poderiam identificar isso de forma mais precoce, nuns sete ou oito dias.
Isso é um problema natural para uma emergência sanitária, quando a liberação dos produtos é feita de forma acelerada. É melhor usar um teste que ainda não tem especificidade tão alta do que não ter teste nenhum. Isso foi feito não só no Brasil, mas também nos EUA e na Europa.