Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) foram informados e se debruçam sobre a conduta do Ministério da Justiça brasileiro ao montar um dossiê para monitorar quase 600 servidores públicos e professores por seu envolvimento em atos antifascismo.
Uma das possibilidades é o Brasil ser colocado em uma espécie de “lista suja” de governos que promovem “intimidações”. Procurado, o Itamaraty até o momento não comentou o fato de o gesto do governo ter entrado no radar dos relatores.
As informações chegaram de maneira discreta à ONU –as pessoas que levaram a informação temem represálias do governo brasileiro.
A ação sigilosa do Ministério da Justiça do governo Bolsonaro foi revelada com exclusividade pelo UOL há duas semanas. Um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança foi identificado como integrante do “movimento antifascismo“, além de três professores universitários.
Em Genebra, fontes do alto escalão da ONU revelaram que pelo menos dois relatores especiais de direitos humanos estão cientes da situação e do comportamento do governo, além da cúpula da organização mundial. As informações chegaram às instâncias internacionais por fontes que, por temer represálias, preferem se manter no anonimato.
Uma das relatoras que foi informada é Agnes Callamard, encarregada de investigar a morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi. No início do ano, ela já havia tecido duros comentários contra o governo de Jair Bolsonaro. “No Brasil, as autoridades políticas parecem estar virando as costas para alguns princípios chave, relacionados com a proteção dos direitos humanos”, disse em entrevista à coluna.
Callamard pediu, naquele momento, uma autorização do governo para fazer uma missão ao país e investigar execuções e assassinatos sumários no Brasil.
O dossiê produzido pelo ministério tem nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas. A atividade contra os antifascistas, conforme documentos aos quais o UOL teve acesso, é realizada por uma unidade do ministério pouco conhecida, a Secretaria de Operações Integradas (Seopi).
Dias depois, quatro parlamentares ouvidos pelo UOL indicaram que o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou que a Seopi realizou um relatório de inteligência sobre o grupo Policiais Antifascismo. Mas insistiu que não ser uma investigação.
“Lista suja”
No que se refere ao dossiê, fontes indicam que um dos caminhos avaliados é de que relatores enviem uma carta oficial ao governo brasileiro cobrando esclarecimentos. O gesto seria uma forma de indicar ao país que o caso está sendo acompanhado e colocar pressão.
A comunicação, meses depois, é tornada pública e circulada entre todos os governos, como maneira de constranger o país envolvido.
Outra consequência prática da chegada do caso à ONU é que ele pode entrar em um informe que a secretaria-geral produz a cada ano sobre governos que adotaram medidas de intimidação contra ativistas, professores, funcionários ou qualquer cidadão que tenha colaborado com o sistema internacional, seja prestando informação sobre as práticas do governo, submetendo evidências ou denunciando abertamente violações de direitos humanos.
Em sua versão de 2019, o relatório da ONU sobre as intimidações citou episódios envolvendo alguns dos principais regimes repressivos do mundo, como Venezuela, China, Egito, Irã e Arábia Saudita.
O documento também traz casos de intimidações na Argélia, Bahrein, Benin, Cuba, Hungria, Sri Lanka, Israel e Iemen.
O caso do Ministério da Justiça soma-se a 37 denúncias apresentadas por violações de direitos humanos no Brasil, apenas em 2019, nos órgãos oficiais da ONU.
Casos envolvendo povos indígenas, tortura, afro-brasileiro, desmonte do setor de saúde, liberdade de imprensa e meio ambiente recolocaram o país num patamar que não se conhecia na diplomacia internacional desde o final da ditadura, nos anos 80. O governo, em resposta, passou a criticar a sociedade civil e relatores da ONU.
A situação internacional do Brasil representa uma ruptura em relação ao caminho adotado desde a redemocratização. O Estado brasileiro abandonou progressivamente a opção negacionista no que se refere aos crimes existentes no país.
O Brasil aderiu ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ainda liderou de forma histórica os trabalhos, em 1993, da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena.
Terroristas
Em junho, os relatores da ONU já lançaram alertas contra líderes que classificam movimentos antifascistas como sendo grupos terroristas. A reação dos especialistas ocorreu depois que, nos EUA, a morte de George Flyod foi seguida por manifestações. Mas o Procurador-Geral dos EUA, William Barr, advertiu que a suposta violência realizada pelo “Antifa” e outros movimentos “é terrorismo doméstico e será tratada de acordo”.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro passou a usar a mesma retórica e classificou todos os integrantes de movimentos antifascistas como “marginais” e “terroristas”. Em declarações no início do mês de junho diante dos protestos, o brasileiro usou tais termos para designar os grupos nas ruas.
“Começou aqui com os antifas em campo. O motivo, no meu entender, político, diferente [dos protestos dos EUA]. São marginais, no meu entender, terroristas. Têm ameaçado, domingo, fazer movimentos pelo Brasil, em especial, aqui no DF”, disse.
Para os relatores da ONU, tal classificação é “preocupante”. O alerta foi lançado por Fionnuala D. Ní Aoláin, Relatora Especial para a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais no combate ao terrorismo, Leigh Toomey, Elina Steinerte, José Antonio Guevara Bermúdez, Sètondji Roland Adjovi, e Sr. Seong-Phil Hong, todos do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU.
Também apoiaram a declaração Tendayi Achiume, Relatora Especial sobre Formas Contemporâneas de Racismo, David Kaye, Relator Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de expressão, e Clément Nyaletsossi Voule, Relator Especial sobre o direito à reunião e associação pacífica.
Para eles, tal comportamento por parte das autoridades “prejudica os direitos à liberdade de expressão e de reunião pacífica no país”.
“A lei internacional dos direitos humanos protege o direito à liberdade de expressão, associação e reunião pacífica”, disse Fionnuala Ní Aoláin. “É lamentável que os Estados Unidos tenham optado por responder aos protestos de forma a minar esses direitos fundamentais”, disse.