ARMAS

Venda de munição para civis no Brasil dobra em um ano

Alta ocorreu após portaria do governo federal ampliar limite de compra para pessoas físicas. Em maio, foram vendidos mais de 2 mil cartuchos por hora

Venda de cartuchos de munição cresce após medidas de flexibilização do presidente Bolsonaro. (Foto: Pixabay)

A política de flexibilização de armas implementada pelo presidente Jair Bolsonaro impulsionou as vendas de munição para cidadãos com direito ao porte ou à posse de armas de fogo em 2020. De janeiro a maio, o crescimento no volume de unidades comercializadas foi de 98% em comparação com o mesmo período de 2019, e de 90% em relação a 2018. Apenas em maio, 1.541.780 cartuchos foram vendidos no varejo do país, o que equivale a mais de dois mil por hora.

Este número corresponde apenas às vendas feitas no comércio para pessoas físicas e exclui policiais militares, bombeiros, agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). As informações integram a base de dados do Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições (Sicovem) e foram obtidas junto ao Exército, via Lei de Acesso à Informação.

O salto no mês passado ocorreu após a publicação de uma portaria — assinada pelo ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e o então ministro da Justiça, Sergio Moro, datada de 23 de abril — que estendeu o limite de compra de munição para quem tem arma de fogo registrada de 200 unidades por ano para valores entre 50 e 300 por mês, a depender do calibre.

Na reunião ministerial do dia anterior, cujo vídeo foi tornado público por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro pressionou Moro e Azevedo e Silva a acelerarem medidas de flexibilização. “Por que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura. E não dá pra segurar mais (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”, disse o presidente aos auxiliares.

Compra supera polícias

As mais de 1,5 milhão de unidades comercializadas em maio superam o volume adquirido no mesmo mês por 11 instituições ligadas à segurança pública, patrimonial ou a atividades de inteligência. Juntos, Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF), Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), polícias civis, polícias militares, corpos de bombeiros, guardas municipais e polícia legislativa compraram, em maio, 1,396 milhão de munições, segundo o Exército

O aumento de munições e armamento em poder da população se soma a deficiência nos mecanismos de controle e cria um cenário propício para desvios. Em outubro do ano passado, o jornal O Globo mostrou que já havia, por exemplo, mais de um milhão de armas registradas no país, segundo a PF.

Já em abril deste ano, por determinação de Bolsonaro, o Exército revogou portarias que criavam sistemas mais rígidos de rastreamento de armas e cartuchos. As normas haviam sido publicadas no mês anterior e irritaram o presidente. O Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça para que a regulamentação volte a valer.

— São munições comercializadas no varejo (para pessoas físicas) de maneira legal e sem nenhuma forma de controle. É inadmissível que a gente combine o aumento dos limites de compra de munição, ampliando o acesso, sem que haja nenhuma contrapartida de melhora dos mecanismos de controle de marcação e rastreamento. Essa combinação é literalmente letal — analisa Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé.

A advogada Isabel Figueiredo, integrante do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acrescenta que armas e munições obtidas por vias legais frequentemente são roubadas ou furtadas e têm como destino o crime organizado:

— Há um conjunto de pesquisas que mostram com clareza que não existe essa ideia da arma legal do “cidadão de bem”. É um discurso vazio de significado. Armas e munições migram em períodos curtos de tempo do mercado legal para o ilegal. A criminalidade no Brasil não é alimentada só por fuzis que chegam ilegalmente pelas fronteiras. A criminalidade cotidiana se faz basicamente com revólver e pistola, e quando é feito o rastreamento do armamento, chega-se na maioria das vezes em armas que tinham origem legal. Eram do médico, do juiz, do promotor, e num momento foram extraviadas e passaram alimentar o mercado ilegal — afirma Figueiredo.

A pesquisadora explica que com isso cria-se um impacto direto e quando é autorizado o aumento da quantidade de armas e munições em circulação isso também significa um crescimento no volume acessado pela criminalidade.

Ao longo da última semana, Bolsonaro voltou a prometer medidas que vão em direção à flexibilização do acesso a armas e munições. Na sexta-feira, durante a inauguração de um hospital de campanha em Águas Lindas de Goiás (GO), afirmou que ia zerar o imposto de importação de armamentos para integrantes das forças de segurança. No dia anterior, ao conversar com um grupo de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) que o aguardava na porta do Palácio da Alvorada, disse que poderia intermediar uma conversa com o general do Exército responsável pela área de fiscalização de produtos controlados. A compra de munições pelos CACs também disparou no governo Bolsonaro: foram 11 milhões de unidades de janeiro a maio deste ano, 24% a mais do que o mesmo período de 2018.

‘Ilusão’ de segurança

Os acenos de Bolsonaro aos defensores da liberação das armas vem desde a campanha eleitoral, quando o então candidato defendia que o armamento da população era uma medida eficiente para reduzir a criminalidade— na contramão dos especialistas em segurança pública. No governo, ele tomou medidas direcionadas aos defensores da flexibilização para atender suas bases mais fieis. Porém, na reunião ministerial de abril, o presidente mudou o discurso e deu tom político às ações na área ao afirmar que queria “evitar uma ditadura” e que “povo armado jamais será escravizado”.

Contudo, esse ponto de vista é minoritário no conjunto da população. De acordo com uma pesquisa Datafolha publicada no fim do mês passado, 72% dos entrevistados discordam da frase de Bolsonaro na reunião ministerial, quando disse querer “todo mundo armado”. No ano passado, o instituto identificou que 66% da população é contra a posse (ter a arma em casa ou no trabalho) e 70% rejeitam a flexibilização do porte (o direito de se deslocar armado).

Uma iniciativa do governo de estender o porte para diversas categorias profissionais chegou a ser oficializada por meio de um decreto no ano passado, mas foi derrubada no Congresso. Deputados e senadores, no entanto, estenderam o direto à posse para todo o terreno, no caso das propriedades rurais, medida também defendida pelo governo.

Especialistas em segurança pública refutam o argumento de que uma população armada estaria menos sujeita a sofrer com criminosos, já que o armamento poderia servir como instrumento de defesa pessoal. Para a coordenadora de projetos do Instituto sou da Paz, Natália Pollachi, esta visão parte de uma premissa falsa de que a vítima estaria preparada ao ser atacada:

— A pessoa vai ser pega de surpresa, não quando está alerta, com a arma no coldre ou na mão. Essa ilusão de que ela vai conseguir reagir como num filme de ação é muito ingênua. O que a gente vê na prática é que, mesmo policiais treinados, têm dificuldades de reagir, porque são pegos de surpresa, muitas vezes quando estão de folga.